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O tempo? Eu acho…

Eu acho que sempre tenho tempo. Quer dizer, eu acho que acho tempo. E, muitas vezes, não só acho, eu acho, o tempo. O que eu não acho é tempo pra descansar. Todo o tempo disponível, que eu acho, eu acho que poderia ser melhor usado com algo que acho mais útil que descansar. É por isso, eu acho, que eu acho que estou tão cansado. Acho que o melhor seria se eu conseguisse aquietar o facho, ser mais macho, comer um nacho, senão, em pouco tempo, sem descanso, eu acho que eu racho. Mas quem sou eu pra confiar no que eu acho? Na verdade, eu acho que um dos meus maiores problemas é que o tempo todo eu acho que eu acho que sei quais são os meus problemas. Mas desculpe, vou parar de incomodar e te deixar descansar. Afinal, eu acho que o meu tempo de descanso, que eu acho que não aproveitei nada, acabou de acabar. Quer dizer, eu acho.

Um tom ainda mais branco do pálido

Até 1994, quando ouvi falarem de A Whiter Shade of Pale, numa exibição de meia noite de The Commitments no cinema Cândido Mendes, como a música mais incompreensível da história, eu só a tinha escutado uma vez. A memória da música era clara, mas eu não conseguia entender o contexto do comentário. Sim, eu lembrava da estranheza da canção, mas algo me faltava para fazer essa ponte cognitiva tão certeira. Óbvio que esse incômodo ativou a minha curiosidade, e, com ela, o meu desejo, sim, de ouvir a música de novo.

Mas eram os anos 90, pré internet, e, na época, matar uma curiosidade requeria trabalho. E sorte. Muita sorte.

Como de costume, deixei o desejo no estacionamento do meu inconsciente e, em toda incursão em sebo, ou loja de discos, sim, elas ainda existiam, eu tentava encontrá-la. Sem sucesso.

Depois de uns meses de busca, a curiosidade estava quase esquecida sob uma montanha de novos interesses quando, num domingo de tarde, depois de tomar um bolo num encontro, sim, na época as pessoas podiam te deixar esperando sem explicação e você não tinha como localizá-las, entrei num sebo de discos do lado da Modern Sound de Copacabana, e lá, na sessão de grupos de rock, tinha uma coletânea chamada Tensões e Emoções com a música.

Segunda música da esquerda pra direita na primeira linha.

Corri pra casa, e coloquei o disco na vitrola para matar a minha curiosidade. Sim, era melhor, e pior, do que imaginava. A música não fazia o menor sentido, mas ao mesmo tempo parecia que tudo que ela dizia estava ligado ao que estava passando no momento: o bolo, o sentimento de rejeição, e, ao mesmo tempo, a sorte e a recompensa de achar o disco, ou melhor, a música que tanto procurava. Tudo, sim, não passava de um tom ainda mais branco de pálido.

Botei a música pra tocar de novo, e saltou à minha vista, na capa de um caderno para jovens no jornal de domingo, um casal de adolescentes dando dicas para o dia dos namorados. Um dia que passei sozinho, mas ouvindo Procol Harum. Peguei o meu diário da época, que tenho até hoje sob pilhas de outros tantos parcialmente escritos, mas nunca terminados, e, num breve relato, lamentei a minha sorte, e comemorei o meu azar.

Hoje, 30 anos depois desse momento mágico, ouvindo uma playlist automática, a música volta de surpresa à minha vida. Tudo ao mesmo tempo parece diferente e igual. Matar curiosidades é mais fácil, e as recompensas não são mais tão mágicas, porém a música, como a vida, continua estranha e surpreendente. Ao mesmo tempo não fazem sentido e são exatamente o que deveriam ser. Como de costume, abro, às vésperas de mais um dia dos namorados, o meu diário, agora digital, e relato tudo o que mudou, e o que não mudou, nesses 30 anos. Tudo é igual e diferente, sim, mas o Procol Harum continua a fazer (e a não fazer) todo sentido.

And so it was laterWhen the miller told this taleThat her face at first just ghostlyTurned a whiter shade of pale

She said, “There is no reasonAnd the truth is plain to see”

Megalopolis e o fim do cinema de erros e certos

As críticas de Megalopolis, o novo filme do Coppola, estão me agradando. Não por falarem bem (ou mal) do filme, mas justamente por estarem incertas a respeito dele. A do Vulture inclusive chama o filme de uma loucura impossível de não amar. Existe melhor definição para arte?

Parece que, depois de anos de filmes dando continuidade a franquias vazias ou adaptando obras às quais deviam(?) fidelidade infantil, finalmente estamos saindo da era dos filmes que acertam e erram para voltar ao conceito dos filmes que simplesmente são (cinema). Vamos torcer que esse tempo perdure.

Dentre as críticas que li, dou destaque pra essa do NYT escrita na forma de perguntas e respostas, e a do Star que faz um bom um retrato da polarização de opiniões a respeito do filme.

O triste é saber que a distribuição de Megalopolis é incerta, mas o que mais esperar de um filme como esse? Simplesmente esperar o incerto ansiosamente. Como sempre deveria ser com o cinema.

Nesse momento, no Rio Grande do Sul…

Nesse momento, a situação do Rio Grande do Sul já se estende por mais de duas semanas e não há aparente sinal de melhoria. Na TV, experientes profissionais de resgate dizem que, após o primeiro choque, a situação já deveria ter melhorado progressivamente. Mas, como no Rio Grande do Sul, ainda não há o menor sinal de melhora, talvez não tenhamos chegado ao ápice da tragédia, o que é extremamente preocupante.

Nesse momento, além de sentirmos que não temos a menor agência sobre isso, mas, surpreendentemente, até temos, o momento histórico, representando por essa conjunção perversa de capitalismo tardio neo-liberal e redes sociais mediadas por IA, só exacerba a falácia da autossuficiência individual que nos faz nos afastar cada vez mais uns dos outros.

Nesse momento, niilistas pró ativos utilizam o desastre como cortina de fumaça para dobrar as apostas na destruição do nosso ambiente natural em nome de um lucro fácil, e se aproveitam da mobilização emocional da catástrofe para criar e espalhar fake news com motivos eleitoreiros. A internet, ao mesmo tempo em que dissemina toda essa vilania, pasteuriza as iniciativas bem intencionadas e transforma qualquer resquício de solidariedade em um culto ao EU. Era pra ser diferente? Num mundo com excesso de ruído que se finge de informação, os maus, óbvio, são exaltados e os bons, desacreditados.

Nesse momento, em que não podemos contar com governos nem com a tal mão invisível da economia para nos salvar, só há uma saída: nos despir nossas certezas e egos para buscar uma união sincera, mas não ingênua, aos moldes do que Richard Sennitt preconiza. Se não seguirmos esse caminho, em breve entraremos para a memória de Gaia como uma colônia desgovernada de vírus destrutivos que a corroeram por milênios até sucumbirem às defesas naturais da própria Terra. Quem diria que iríamos nos descobrir como microorganismos patogênicos atacados por anticorpos geológicos?

Nesse momento, só nos resta escolher nosso destino biológico coletivo: seremos vírus, parasitas ou simbiontes desse espaço magnífico que fez a gentileza de nos acolher?

Nesse momento, a humanidade parece ter feito a escolha errada.

Nesse momento, torço e rezo para que voltemos atrás.

Nesse momento, me faltam reticências…

Sim, mas a pirataria….

Olha só, recentemente fiquei próximo de, ou, melhor, fui tragado para algumas discussões sobre a livre circulação de livros em formato digital, a.k.a. pirataria, e achei de bom tom explicar por que sou contrário a esse comportamento por critérios práticos e não exatamente morais ou legais.

Só pra contextualizar meu lugar de fala: como algumas pessoas sabem, fui sócio de duas livrarias, a Baratos (da Ribeiro) e o Le Bon Sebon; sou um leitor e comprador de livros contumaz, os livros empilhados pela minha casa que o digam; e hoje uma das minhas atribuições profissionais é gerenciar uma biblioteca técnica privada, mas aberta ao público, com mais de 30 mil volumes físicos e digitais. Dito isso, ninguém precisa me explicar como é importante para a cultura e o ecossistema do livro que as pessoas os comprem. Afinal, sem recursos financeiros, editoras não publicam, livrarias não conseguem manter suas portas abertas, e os tais dos livros não chegam às mãos (e aos olhos) dos leitores.

Ah, é, por falar nisso, não sei se estão cientes, mas a responsabilidade do fechamento de várias livrarias é, sim, parcialmente de quem não consome nelas para baixar em seus HD livros que nunca lerão. Esse tipo de hábito infantil e pernicioso acaba gerando um dos momentos que me dá mais raiva na vida, quando a pequena e combalida livraria de bairro fecha, como ocorreu recentemente aqui perto de casa com a Galileu, e o povo se junta em lamentos públicos pelas lojas que não frequentava. Na boa, é muito fácil ser defensor da cultura no seu velório pra pagar de bom moço.

Depois que a livraria fecha não adianta fazer homenagem

Ah, mas os preços dos livros… Bom, sim, são/estão caros, mas posso te contar um segredo? Os preços dos livros serão cada vez mais caros quanto menos pessoas os consumirem. E, pasme, se a condição financeira for realmente um problema, não sei se lhe contaram mas tem uns lugares que vendem livros de segunda mão, chamados sebos, onde você pode comprar a preços bem mais em conta obras, muitas vezes, em excelente estado e, surpresa, em que as palavras estão na mesma ordem que nos livros novos. Isso não é genial?

Pra melhorar, talvez ainda não seja do seu conhecimento, mas ainda inventaram um outro lugar incrível onde você pode ir, ler e levar livros pra casa gratuitamente. Como é o nome mesmo? Ah, Bibliotecas. É assim que fala? Bibliotecas? Bom, elas também não vão lá muito bem das pernas, mas sabe por quê? Porque as pessoas não as frequentam. Aí os municípios as fecham, os estados diminuem seus orçamentos, e apenas o Real Gabinete Português de Leitura parece existir, não como Biblioteca, óbvio, mas como espaço instagramável.

É pra ler ou pra tirar foto?

Ah, mas na sua cidade não tem biblioteca, nem livraria, ou você está com pressa para ler a tal obra. Sem problemas. Muitas bibliotecas são digitais e você pode acessar elas do seu IPhone, que comprou pra discutir com seu tio no whatsapp e custa basicamente o preço de uns 100 livros. Pra lhe facilitar, passo aqui o link da Biblio On, belíssima iniciativa digital do estado de São Paulo; e da Open Library do Internet Archive que permite acesso a um enorme acervo de livros, filmes e músicas legais, tanto no sentido jurídico como de qualidade. Quem diria que a Internet serviria pra acessar bibliotecas do mundo todo? Sensacional, não?

Ah, tá, mas o teu problema é ideológico. Você é contra os conglomerados monopolistas, como a Amazon. Beleza, mas alegar estar lutando contra eles, para ficar circulando PDF por aí, enquanto compra geladeiras e TVs no site, e ignora as livrarias do seu bairro, é quase a definição literal de hipocrisia. E antes que venha me falar do mercado das editoras científicas, conheça melhor a história delas antes de tentar comparar com o mercado de livros comuns. Sim, o que elas fazem é extorsão, mas só conseguem agir impunemente por mais de um século, pois a publicação de trabalhos acadêmicos, se não sabem, é um mercado para autores, que precisam evidenciar produção e ter visibilidade, e não para leitores, totalmente focado na venda de acesso a Universidades. Por falar nisso, quando foi a última vez que foi a uma biblioteca universitária, sim, muitas são abertas à comunidade, para ler trabalhos acadêmicos? Ok, vou lhe dar um tempinho pra tentar localizar na memória esse momento mágico.

Seja como for, o que eu quero dizer é: não pirateiem livros. Mas, se nem os argumentos financeiros, nem práticos, nem éticos balançaram a sua consciência, acho que não tem jeito mesmo. Então, esqueça tudo o que disse, baixe seus livros, finja que os lê, pavoneie a sua enorme biblioteca digital virgem pelas redes sociais da vida, e tenha certeza que por mais que se diga um(a) leitor(a), você não faz parte da comunidade.

Sim, você não faz parte, pois essa comunidade não é um clube de compras ou consumidores, nem um encontro de acumuladores; essa é uma comunidade de pessoas que querem trocar sobre o que leram, sobre as ideias que tiveram, sobre o que os livros lhes fizeram refletir, sentir, e amar. É uma comunidade que não termina no livro, mas que começa nele. E para acolher os encontros dessa comunidade é que precisamos manter vivos esses espaços físicos e virtuais de trocas de conhecimento, que são muito mais do que simples templos de comércio ou armazéns de secos e molhados. Esses espaços são, ou pelo menos deveriam ser, um lar fora do nosso lar. E nossos lares estão ameaçados justamente pelos hábitos imaturos e imediatistas daqueles que mais deveriam nos apoiar.

Sim, hoje, você, filho pródigo, que se afastou de nós por pura comodidade, põe em risco o próprio lugar de onde veio. Mas, se mudar de ideia, sabe onde nos encontrar e será um grande prazer lhe receber de volta ao seu lar.

Na verdade, uma biblioteca, mas não um diretório cheio de PDF

Pela inutilidade da arte

Pode ser até a culpa das últimas leituras que tenho feito (sim,Byung-Chul Han, estou falando de você), mas estou surpreso como está aparecendo na minha frente um bando de tentativas de transformarem tudo em a-ti-vi-da-de, em u-ti-li-da-de. A última foi essa:

Além de ser uma clara tentativa de se aproveitar do assunto do momento para vender óleo de cobra, tem algo muito ruim na premissa desse produto. Ele considera que há uma maneira mais efetiva de cumprir os objetivos da literatura, que, pelo discurso do produto, é produzir mais e vender mais livros.

A arte deixaria, então, de ser uma ferramenta de expressão única e individual para gerar conexões entre as pessoas para ser uma categoria de produtos que servem apenas ao consumo e podem ser realizados por máquinas com breves colaborações dos operadores humanos. Já imagino que futuramente a próxima publicação desse Eldes seja: Como ajudar o Chat GPT a construir livros a serem vendidos pela Amazon. Afinal, não podemos impedir o progresso de transformar o mundo num pesadelo permanente, certo?

Depois de me recuperar parcialmente do choque e da tristeza que o post me causou, só me lembrei do Orgasmatron, a máquina do filme O Dorminhoco de Woody Allen, que, num mundo futuro de frígidas e impotentes, é responsável por gerar prazer sexual terceirizado. Vejam só como é triste (e engraçado ao mesmo tempo).

O espanto que o filme provoca pela terceirização mecânica do prazer do sexo deveria ser o mesmo quando vemos tentativas de terceirizar o prazer da concepção e da criação da arte. A pergunta que essa sátira, e esse post suscitam é: as coisas só existem para serem úteis, efetivas? A arte só tem serventia como criadora de produtos e vendas? O prazer gerado pela criação e pela conexão nada importa em comparação aos seus objetivos mercadológicos?

Segundo o tal Eldes e os criadores do Orgasmatron, nada é prazer, só há metas. Pode até ser que eles, no atual contexto torto do mundo, estejam certos, mas, sorry, esse não é um mundo onde me dá muita vontade de viver.