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Nesse momento, no Rio Grande do Sul…

Nesse momento, a situação do Rio Grande do Sul já se estende por mais de duas semanas e não há aparente sinal de melhoria. Na TV, experientes profissionais de resgate dizem que, após o primeiro choque, a situação já deveria ter melhorado progressivamente. Mas, como no Rio Grande do Sul, ainda não há o menor sinal de melhora, talvez não tenhamos chegado ao ápice da tragédia, o que é extremamente preocupante.

Nesse momento, além de sentirmos que não temos a menor agência sobre isso, mas, surpreendentemente, até temos, o momento histórico, representando por essa conjunção perversa de capitalismo tardio neo-liberal e redes sociais mediadas por IA, só exacerba a falácia da autossuficiência individual que nos faz nos afastar cada vez mais uns dos outros.

Nesse momento, niilistas pró ativos utilizam o desastre como cortina de fumaça para dobrar as apostas na destruição do nosso ambiente natural em nome de um lucro fácil, e se aproveitam da mobilização emocional da catástrofe para criar e espalhar fake news com motivos eleitoreiros. A internet, ao mesmo tempo em que dissemina toda essa vilania, pasteuriza as iniciativas bem intencionadas e transforma qualquer resquício de solidariedade em um culto ao EU. Era pra ser diferente? Num mundo com excesso de ruído que se finge de informação, os maus, óbvio, são exaltados e os bons, desacreditados.

Nesse momento, em que não podemos contar com governos nem com a tal mão invisível da economia para nos salvar, só há uma saída: nos despir nossas certezas e egos para buscar uma união sincera, mas não ingênua, aos moldes do que Richard Sennitt preconiza. Se não seguirmos esse caminho, em breve entraremos para a memória de Gaia como uma colônia desgovernada de vírus destrutivos que a corroeram por milênios até sucumbirem às defesas naturais da própria Terra. Quem diria que iríamos nos descobrir como microorganismos patogênicos atacados por anticorpos geológicos?

Nesse momento, só nos resta escolher nosso destino biológico coletivo: seremos vírus, parasitas ou simbiontes desse espaço magnífico que fez a gentileza de nos acolher?

Nesse momento, a humanidade parece ter feito a escolha errada.

Nesse momento, torço e rezo para que voltemos atrás.

Nesse momento, me faltam reticências…

Sim, mas a pirataria….

Olha só, recentemente fiquei próximo de, ou, melhor, fui tragado para algumas discussões sobre a livre circulação de livros em formato digital, a.k.a. pirataria, e achei de bom tom explicar por que sou contrário a esse comportamento por critérios práticos e não exatamente morais ou legais.

Só pra contextualizar meu lugar de fala: como algumas pessoas sabem, fui sócio de duas livrarias, a Baratos (da Ribeiro) e o Le Bon Sebon; sou um leitor e comprador de livros contumaz, os livros empilhados pela minha casa que o digam; e hoje uma das minhas atribuições profissionais é gerenciar uma biblioteca técnica privada, mas aberta ao público, com mais de 30 mil volumes físicos e digitais. Dito isso, ninguém precisa me explicar como é importante para a cultura e o ecossistema do livro que as pessoas os comprem. Afinal, sem recursos financeiros, editoras não publicam, livrarias não conseguem manter suas portas abertas, e os tais dos livros não chegam às mãos (e aos olhos) dos leitores.

Ah, é, por falar nisso, não sei se estão cientes, mas a responsabilidade do fechamento de várias livrarias é, sim, parcialmente de quem não consome nelas para baixar em seus HD livros que nunca lerão. Esse tipo de hábito infantil e pernicioso acaba gerando um dos momentos que me dá mais raiva na vida, quando a pequena e combalida livraria de bairro fecha, como ocorreu recentemente aqui perto de casa com a Galileu, e o povo se junta em lamentos públicos pelas lojas que não frequentava. Na boa, é muito fácil ser defensor da cultura no seu velório pra pagar de bom moço.

Depois que a livraria fecha não adianta fazer homenagem

Ah, mas os preços dos livros… Bom, sim, são/estão caros, mas posso te contar um segredo? Os preços dos livros serão cada vez mais caros quanto menos pessoas os consumirem. E, pasme, se a condição financeira for realmente um problema, não sei se lhe contaram mas tem uns lugares que vendem livros de segunda mão, chamados sebos, onde você pode comprar a preços bem mais em conta obras, muitas vezes, em excelente estado e, surpresa, em que as palavras estão na mesma ordem que nos livros novos. Isso não é genial?

Pra melhorar, talvez ainda não seja do seu conhecimento, mas ainda inventaram um outro lugar incrível onde você pode ir, ler e levar livros pra casa gratuitamente. Como é o nome mesmo? Ah, Bibliotecas. É assim que fala? Bibliotecas? Bom, elas também não vão lá muito bem das pernas, mas sabe por quê? Porque as pessoas não as frequentam. Aí os municípios as fecham, os estados diminuem seus orçamentos, e apenas o Real Gabinete Português de Leitura parece existir, não como Biblioteca, óbvio, mas como espaço instagramável.

É pra ler ou pra tirar foto?

Ah, mas na sua cidade não tem biblioteca, nem livraria, ou você está com pressa para ler a tal obra. Sem problemas. Muitas bibliotecas são digitais e você pode acessar elas do seu IPhone, que comprou pra discutir com seu tio no whatsapp e custa basicamente o preço de uns 100 livros. Pra lhe facilitar, passo aqui o link da Biblio On, belíssima iniciativa digital do estado de São Paulo; e da Open Library do Internet Archive que permite acesso a um enorme acervo de livros, filmes e músicas legais, tanto no sentido jurídico como de qualidade. Quem diria que a Internet serviria pra acessar bibliotecas do mundo todo? Sensacional, não?

Ah, tá, mas o teu problema é ideológico. Você é contra os conglomerados monopolistas, como a Amazon. Beleza, mas alegar estar lutando contra eles, para ficar circulando PDF por aí, enquanto compra geladeiras e TVs no site, e ignora as livrarias do seu bairro, é quase a definição literal de hipocrisia. E antes que venha me falar do mercado das editoras científicas, conheça melhor a história delas antes de tentar comparar com o mercado de livros comuns. Sim, o que elas fazem é extorsão, mas só conseguem agir impunemente por mais de um século, pois a publicação de trabalhos acadêmicos, se não sabem, é um mercado para autores, que precisam evidenciar produção e ter visibilidade, e não para leitores, totalmente focado na venda de acesso a Universidades. Por falar nisso, quando foi a última vez que foi a uma biblioteca universitária, sim, muitas são abertas à comunidade, para ler trabalhos acadêmicos? Ok, vou lhe dar um tempinho pra tentar localizar na memória esse momento mágico.

Seja como for, o que eu quero dizer é: não pirateiem livros. Mas, se nem os argumentos financeiros, nem práticos, nem éticos balançaram a sua consciência, acho que não tem jeito mesmo. Então, esqueça tudo o que disse, baixe seus livros, finja que os lê, pavoneie a sua enorme biblioteca digital virgem pelas redes sociais da vida, e tenha certeza que por mais que se diga um(a) leitor(a), você não faz parte da comunidade.

Sim, você não faz parte, pois essa comunidade não é um clube de compras ou consumidores, nem um encontro de acumuladores; essa é uma comunidade de pessoas que querem trocar sobre o que leram, sobre as ideias que tiveram, sobre o que os livros lhes fizeram refletir, sentir, e amar. É uma comunidade que não termina no livro, mas que começa nele. E para acolher os encontros dessa comunidade é que precisamos manter vivos esses espaços físicos e virtuais de trocas de conhecimento, que são muito mais do que simples templos de comércio ou armazéns de secos e molhados. Esses espaços são, ou pelo menos deveriam ser, um lar fora do nosso lar. E nossos lares estão ameaçados justamente pelos hábitos imaturos e imediatistas daqueles que mais deveriam nos apoiar.

Sim, hoje, você, filho pródigo, que se afastou de nós por pura comodidade, põe em risco o próprio lugar de onde veio. Mas, se mudar de ideia, sabe onde nos encontrar e será um grande prazer lhe receber de volta ao seu lar.

Na verdade, uma biblioteca, mas não um diretório cheio de PDF

Pela inutilidade da arte

Pode ser até a culpa das últimas leituras que tenho feito (sim,Byung-Chul Han, estou falando de você), mas estou surpreso como está aparecendo na minha frente um bando de tentativas de transformarem tudo em a-ti-vi-da-de, em u-ti-li-da-de. A última foi essa:

Além de ser uma clara tentativa de se aproveitar do assunto do momento para vender óleo de cobra, tem algo muito ruim na premissa desse produto. Ele considera que há uma maneira mais efetiva de cumprir os objetivos da literatura, que, pelo discurso do produto, é produzir mais e vender mais livros.

A arte deixaria, então, de ser uma ferramenta de expressão única e individual para gerar conexões entre as pessoas para ser uma categoria de produtos que servem apenas ao consumo e podem ser realizados por máquinas com breves colaborações dos operadores humanos. Já imagino que futuramente a próxima publicação desse Eldes seja: Como ajudar o Chat GPT a construir livros a serem vendidos pela Amazon. Afinal, não podemos impedir o progresso de transformar o mundo num pesadelo permanente, certo?

Depois de me recuperar parcialmente do choque e da tristeza que o post me causou, só me lembrei do Orgasmatron, a máquina do filme O Dorminhoco de Woody Allen, que, num mundo futuro de frígidas e impotentes, é responsável por gerar prazer sexual terceirizado. Vejam só como é triste (e engraçado ao mesmo tempo).

O espanto que o filme provoca pela terceirização mecânica do prazer do sexo deveria ser o mesmo quando vemos tentativas de terceirizar o prazer da concepção e da criação da arte. A pergunta que essa sátira, e esse post suscitam é: as coisas só existem para serem úteis, efetivas? A arte só tem serventia como criadora de produtos e vendas? O prazer gerado pela criação e pela conexão nada importa em comparação aos seus objetivos mercadológicos?

Segundo o tal Eldes e os criadores do Orgasmatron, nada é prazer, só há metas. Pode até ser que eles, no atual contexto torto do mundo, estejam certos, mas, sorry, esse não é um mundo onde me dá muita vontade de viver.

A (sobre)vida do autor

Mês passado, como não fazia há tempos, assisti ao Oscar e, após o evento, caí num sono reparador e sonhei com a ideia que vou descrever abaixo. Levou um pouco de tempo pra eu conseguir concatenar as ideias, por isso, peço desculpas antecipadas pelas cruéis maquinações do meu inconsciente e agradeço antecipadamente a vocês por me concederem a sua atenção nesse processo de reflexão a céu aberto. Afinal, é pra isso que serve esse formato de blog, não? Então vamos lá.

Ao contrário de outras formas de arte, no cinema, ou no audiovisual, em geral, há um conflito mais claro entre o que chamamos de obras “comerciais” e de autor. Ou, pior, a balança sempre tende a pender para o comercial. Na TV, por exemplo, as tais obras de autor são super raras e normalmente só existem por uma resposta inesperada do público ou por alguma brecha gerada por crises financeiras onde experimentalismos mais radicais acabam sendo tolerados, até que eles se tornem, também, produtos e franquias.

O Oscar durante muitos anos sempre andou, ou anda, no fio dessa navalha: se apresenta como a “festa da indústria”, enquanto costuma premiar os autores que trazem seus trabalhos mais idiossincráticos pras telas. O caso de Spielberg é um dos mais representativos. Depois de anos de blockbusters e loas da crítica, ganhou seu primeiro Oscar com um filme fora do seu estilo tradicional, após alguns exercícios estilísticos que foram recebidos com diferentes graus de aceitação.

Porém, esse conflito não acontece com tanta frequência ou com a mesma força em outras artes. Na Literatura, por exemplo, não é comum vermos um trabalho que esteja tão desvinculado da autoria e da posição individual do autor sobre a vida. Há, sim, obras de gênero, mas, por mais que, nesses caos, os autores possam fazer uso de fórmulas para atender a grupos específicos de consumidores, eles raramente se desvinculam totalmente dos seus interesses basais e das suas posições ideológicas. Explico.

Por exemplo, enquanto é perfeitamente possível que no cinema um diretor, roteirista ou atriz antiteísta, e não simplesmente ateísta, participem da produção de uma obra de exaltação religiosa, é muito mais difícil isso ocorrer na literatura, mesmo quando o autor está trabalhando como ghost ou assumindo uma obra comissionada. Ou seja, o papel do autor e a sua representação na obra são mais fortes.

Se formos pensar em como essa divisão se dá nas demais artes, por incrível que pareça, nesse ponto, as artes gráficas, de perfil mais artesanal, como os quadrinhos, a escultura e a pintura, se aproximam mais do cinema do que da literatura, enquanto o teatro, um esforço comunitário, consegue se colocar num meio de caminho. A música, já, nem se fala. Está de mãos dadas com o cinema nesse ponto.

Mas o que seria determinante no processo de produção, divulgação, ou “consumo” das obras que influenciaria a sua relação mais próxima ou afastada da autoria?

A princípio obras prioritariamente coletivas, como se diz, criadas por comitês, tem um caráter mais comercial pois também requisitam não só mais recursos para existirem como também tem fluxos de produção mais complexos com diversas camadas de processos decisórios coletivos ou descentralizados. Nesses casos, os ditos interesses comerciais poderiam se manifestar e se justificar com mais facilidade, diminuindo o papel e a expressão do autor nas sua manifestações. Em obras individuais, esse tipo de intenção mercantilista é mais difícil de ser apoiada e os que se colocam dessa forma acabam sendo taxados de Sell Outs.

Outro fator determinante seria em que passo do fluxo criativo ela se encontra. As obras mais próximas da ideia original tenderiam a ser mais autorais, pois menos analisadas e mais instintivas, enquanto aquelas que requerem múltiplas revisões ou são simplesmente adaptações ou derivativas tem um distanciamento maior do desejo inicial de criação sendo mais suscetíveis a inclinações comerciais.

Um terceiro critério desse viés mais ou menos comercial é o investimento necessário e o retorno esperado, tanto financeiro como de esforço. Obras que envolvem baixo retorno e investimento tendem a ser mais pessoais, pois tanto os riscos como as expectativas são menores. Quando as expectativas e os recursos necessários vão aumentando as obras vão adquirindo não só salvaguardas e preocupações financeiras como também de imagem, o que não deixa de ser um ativo. Além disso, as obras em artes plásticas, pelo seu caráter de unicidade e por estarem no mercado de luxo, podem tender a gerar padrões mais repetitivos ligados ao autor como grife mais do que como expressão.

Agora, há atualmente um ponto que suplanta todos esses outros: a pressão interna para ser vendável.

Meio que numa vibe de A Sociedade do Cansaço, e inspirado por leituras como Story do McKee, A Jornada do Escritor do Vogler, dentre outras obras, artistas, em especial a galera da Literatura, que, por tudo que disse acima, deveria a que menos estaria preocupada com isso, está obcecada em fazer a coisa certa, i.e., ter sucesso comercial.

É estranho e extremamente contraproducente às artes que aquelas manifestações com maior liberdade estejam sendo, por que não usar o termo?, censuradas na sua concepção por desejos de sucesso comercial.

Por isso, quando vi, no Oscar, sinais de uma abertura a obras menos comerciais, confesso que fiquei mais feliz. Espero sinceramente que os meus amigos da literatura comecem a ser influenciados a abandonar a ideia de que bonito é fazer dinheiro. A vida é muita curta pra você abandonar a arte que fala ao seu coração pra fazer sucesso (ilusório) em redes sociais controladas por robôs.

Enfim, Roland Barthes pode ter proclamado a morte do autor, mas não vamos provocar nossa total aniquilação, com motivos puramente mercenários, pelas nossas próprias mãos. Os leitores merecem se relacionar com, nós, os autores mesmo que estejamos “falecidos”. 😉

A estagnação cultural das famílias televisivas

Ontem, meu amigo, Rafael Lima, me enviou um link do Instagram com a bela arte conceitual de Os Flinstones, concebido para ser um desenho para adultos e exibido, durante anos, no horário nobre da TV americana. Claro que isso me fez cair num buraco de coelho das narrativas sobre famílias na televisão.

https://www.instagram.com/p/C5rSZXSPn8J/?igsh=MWRtZGo5NWJrZnRjOQ==

O desenho hoje parece ingênuo, inapropriado em alguns momentos, e bastante clichê, mas, precisamos lembrar, foi ele, como um marco na Televisão e na história das narrativas sobre famílias, que criou o modelo que vem sendo repetido à exaustão. Desde a sua criação, muitas famílias passaram pelas nossas telas, animadas ou não, refletindo as mudanças no modelo familiar e na sociedade. Os tecnológicos Jetsons, os bicho grilos dos Muzzarelas, os exóticos Addams, a falida família Bundy, e, por que não?, até a família contracultural dos Quest, com um casal de homens e filhos multiétnicos. Porém, parece que tudo parou em Os Simpsons, que há mais de 30 permanece imbatível como a família nuclear americana, e, quiçá, mundial.

Óbvio que tivemos algumas outras experiências narrativas com famílias nesse período, como, por exemplo, em Family Guy, American Dad, e King of the Hill, mas nenhuma tirou o posto de Os Simpsons. É curioso que algumas dessas experiências mais significativas se remetam a famílias do passado, como os Goldbergs e os Rock (de Everybody Hates Chris) nos anos 80, e os Formans de That 70’s (e 90’s) Show, enquanto as demais representações começaram a ter famílias escondidas sob relações laborais, em Community, The Office, e Futurama, ou famílias estendidas baseadas em amizade, em, surpresa!, Friends, How I Met Your Mother, e Will & Grace.

Parece até que paralisamos não só no modelo familiar, como culturalmente, à espera de outros formatos narrativos e familiares que abarquem as mudanças que tivemos desde então.

Não espanta que estejam tentando retomar os Flinstones com o spin off Bedrock, onde a “família moderna da idade da pedra” será confrontada com a passagem para a era do Bronze. Talvez essas nossas sensação de vazio e paralisia familiares sejam apenas frutos de um interminável período de transição sem vistas de se encerrar.

De toda forma ainda fica o questionamento: paramos de mudar ou perdemos a coragem de mostrar como somos de verdade enquanto famílias? Vamos deixar os Flinstones tentarem responder a essa pergunta enquanto temos um “gay ol’ time”.

O elogio da Rotina

Hirayama acorda antes de o sol nascer. Arruma o tatame sobre o qual dorme, escova os dentes, asperge água nas mudas de suas plantas, e se arruma para o trabalho. Ao colocar os pés pra fora de casa, olha o céu. Todo dia é diferente, todo dia é igual. Compra um café numa máquina de vendas, entra no carro e escolhe uma fita cassete para ouvir no caminho para o trabalho.

Qual é o seu trabalho? Ele é faxineiro de banheiros em Tóquio. Com esmero, se dedica a limpar os cantos mais recônditos dos mais diferentes tipos de sanitários espalhados pela cidade. As pessoas passam por ele e parecem não vê-lo. Ele é, pelo menos socialmente, invisível. Porém, por não ser visto, consegue ver o que muitos não conseguem: o homem árvore, a muda crescendo no jardim do templo, a moça que almoça solitária, a criança perdida, uma mensagem, na forma de um jogo da velha, abandonada numa fresta de um banheiro.

O trabalho termina. Ele se higieniza e relaxa num banho público; janta, assistindo a pessoas levarem suas vidas; e retorna para casa para ler e dormir. Sonha. Com o que viveu. Com o que pode viver. Acorda.

Seus dias, perfeitos, são invadidos por pequenas irritações e surpresas com as quais precisa lidar: o colega de trabalho irresponsável e imaturo; a quase namorada do colega com um gosto musical impecável; a sobrinha que fugiu de casa; o restaurante, onde janta na sua folga, fechado. O que quebra a sua rotina faz parte da rotina. Caso contrário, a rotina, como ele, também seria invisível.

Num mundo, e num cinema, de superlativos vazios, o mundano, o microscópico, também pode ser um espetáculo. Afinal, tudo é uma questão de respeitar o tempo como ele é.

Da próxima vez é da próxima vez. Agora é agora.

Em filmes como Dias Perfeitos, descrito acima, Patterson, e Cortina de Fumaça, a estrela é o fundo, e não a figura. Ao invés de explodir o tempo inteiro na sua cara, as figuras se destacam justamente pois o fundos, as rotinas, são construídos com delicadeza e detalhismo.

E em todos esses filmes, o fazer da arte pontua o que parece repetitivo. Hirayama tira fotos da sua amiga árvore na hora do almoço, Paterson escreve poemas entre as viagens do ônibus que conduz pela sua cidade homônima, Auggie Wren tira fotos da esquina da sua tabacaria todo dia, no mesmo horário matutino. E, como Auggie ensina a seu amigo Paul Benjamin, é preciso olhar com calma para ver a variedade de vida que se esconde nessa aparente monotonia.

“Todas são iguais, mas cada uma é diferente da outra”

É nesse exercício quase esquecido do olhar com calma que o magnífico e o surpreendente saltam aos olhos no aparentemente banal. Enquanto isso, envolto em suas maquinações egoicas, o mundo, dominado pela sua sensação de auto importância, não consegue ver o que realmente importa: a calma.

Sim, tenha calma. Independentemente do que tenta nos desequilibrar, é no rir e chorar do dia a dia que a vida se vive, e, assim, em paz, nos sentimos bem

Dragonfly out in the sun you know what I mean, don’t you know?

Butterflies all havin’ fun, you know what I mean

Sleep in peace when day is done, that’s what I mean

And this old world, is a new world

And a bold world for me, yeah-yeah

Stars when you shine, you know how I feel

Scent of the pine, you know how I feel

Oh, freedom is mine

And I know how I feel

It’s a new dawn

It’s a new day

It’s a new life for me

I’m feeling good

Nina SimoneFelling Good