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Poesia precisa de prefácio?

Esse texto foi escrito para abrir o livro Passione Poética: & Poemas Entrecortados de Marcos Khan, já disponível na Amazon. Vou dizer pra vocês, nada mais difícil que escrever um prefácio. Sempre sai errado. Vejam aqui o quanto errei.

Hoje, flagrar alguém escrevendo poesia é como pegar um familiar num ato de perversidade sexual:

“Mas logo você? Por quê? POR QUÊ?”

Nessa época em que todos nos tornamos gera-dores de conteúdo para encher os vazios imencionáveis da nossa existência pós-pós-pós, a poesia foi a única forma de manifestação humana que não mereceu uma rede social exclusiva para se aproveitar do nosso trabalho digital escravo. Por quê? Eu tenho minhas suspeitas.

Poesia requer tempo. Tanto do autor como do leitor. Uma vez, numa oficina de contos na saudosa estação das letras, ouvi o grande Paulo Scott declarar:

“Ler poesia requer disponibilidade para embarcar na viagem do outro”

Fato. E num mundo cheio de espelhos, a quem importa tentar vivenciar e embarcar na subjetividade alheia?

Poesia não quer nada. E quer tudo. Por isso não tem objetividade, nem funciona como o tão desejado “call to action” das agências de publicidade (ainda existe isso?).

Ao terminar de ler um poema, você não sente vontade de consumir nada. Quando muito de dar um longo suspiro e pensar na pessoa amada.

E por último, poesia é… poesia… enfim, poesia é poesia.

E, por mais que nos Instagrams da vida, vez ou outra, surja um poeta de pé quebrado, rimando mulher com colher, e esperando ser convidado para declamar em festas de 15 anos de futuras socialites prafrentex, poesia deixou de ser um esporte popular. Tanto para assistir, como para praticar.

Então, ao descobrir Marcos Khan como poeta, me fiz a mesma pergunta que o mundo faz a qualquer poeta: “pra quê?”

Pra que escrever sobre o cotidiano de casais apaixonados?
Pra que expor seus encontros de civitate andante com as mazelas da cidade?
Para que nos lembrar que é possível sentir falta dos outros e degustar o sabor da saudade?
Pra que usar rima, métrica e redondilhas, nos fazendo fazer acrobacias verbais e orais em aliterações, numa linguagem de emoções que não cabe em 280 ou 140 caracteres?
Pra que exacerbar o sentimento e capturar os momentos do amanhecer e do anoitecer na espera do corpo da sua paixão?
Pra quê?
Pra quê?
Pra quê?

Eu lhe digo pra quê.

Marcos Khan, seguindo o conselho do melhor pior professor do mundo, Mr. Keating, faz o uso da linguagem pura, para o que ela foi inventada: cortejar as mulheres, e, por tabela, o mundo que nos cerca.

Há missão mais nobre que essa? Não precisa responder, leia seus poemas e veja o que ele tem a nos dizer sobre isso.

Então, saia de suas redes sociais, desligue seu celular e demais eletrônicos, e se permita viajar pela sua subjetividade, tomando o seu papel, ou o papel da sua musa, Cristiane, e o encontre andando sobre os versos que cobrem seu caminho pelas ruas de um Rio de Janeiro que não existe mais, mas deveria.

Pra quê? Você quer mesmo que eu repita?

Números da Vacina

Exatamente um ano e três meses depois da OMS declarar CoVid uma pandemia, fui tomar a minha primeira dose da vacina. Se você esquecer que vivemos num país desgovernado há dois anos e meio por um genocida que promove a doença e dificulta a imunização, dá até pra dizer que foi rápido; mas não foi. Foi uma eternidade; e nesse período perdemos pessoas queridas das nossas vidas e importantes para a nossa coletividade. Como não quero ser uma delas, como não quero ser mais uma das vítimas da campanha negacionista da milícia dos zero-zeros do Vivendas da Barra, fui me vacinar.

Ansioso, preparei uma bolsa no dia anterior com tudo que eu ia precisar: carteira de identidade e CPF; os dois atestados médicos de comorbidade e o exame positivo de CoVid para justificar estar entrando na repescagem; um livro, um fanzine, e uma graphic novel para me ocupar sem precisar ficar olhando pro celular; e uma caneta pro caso de querer escrever algo nas margens dos livros. Nunca se sabe que ideias podemos ter ou que curiosidades podemos presenciar.

Acordei às quatro e vinte e seis, bem mais cedo do que preciso, como sempre, e tentei matar o tempo até a hora de partir pro posto de vacinação: ouvi a Rádio Acoustika FM de Rio das Ostras; tolamente li os jornais, só pra me dar mais raiva do país, dos tiranetes fascistas que nos oprimem e seus seguidores acéfalos; e tentei tirar o gosto ruim de desamparo da garganta com uma overdose de palavras cruzadas. Sem sucesso.

Sete horas da manhã, me vesti; dei um beijo na minha mulher, que fez um infrutífero esforço para acordar; coloquei duas máscaras, uma cirúrgica e uma de tecido; e chamei um Uber para curtir uma fila. Cheguei na frente do Museu da República às sete e doze, e, óbvio, não era o primeiro. Na minha frente, vinte e uma pessoas esperavam, tomando café, conversando, fumando, como se estivessem aguardando para entrar numa boate. Li o fanzine, a graphic novel, quarenta e três páginas do meu livro, disse não a dois pedintes sem máscara, e logo deu oito da manhã, quando o posto deveria abrir, mas não abriu. No longuíssimo minuto e meio em que as portas demoraram para ser abertas e impediram os funcionários do posto de vir organizar a fila, mandei duas mensagens e meia reclamando da demora.

A fila andou e nos colocaram sentados em quatro filas de quinze cadeiras cada. Eu era o sétimo da segunda fila. Uma funcionária da secretaria de saúde passou por nós perguntando as idades ou as comorbidades que nos permitiam tomar a vacina: cinquenta e quatro, doença autoimune, cinquenta e sete, cinquenta e oito, obesidade, deficiência permanente, doença renal crônica, cinquenta e quatro, cinquenta e quatro, pressão alta, cinquenta e quatro, pressão alta. De três em três éramos encaminhados para duas mesas onde anotavam nossos nomes, cpf, identidades, idades, e as datas quando devemos voltar para a segunda dose. Pra mim, quatro de setembro. Uma espera de oitenta e quatro dias.

Segui pelo salão ministerial, observado pelos quadros de oito ex presidentes brasileiros, até uma saleta onde uma enfermeira me esperava. Ela pegou a ampola de cinco mililitros de Astrazeneca, encheu a seringa, pediu pra eu subir a manga direita da camisa, relaxar o braço e, pronto, estava vacinado. Ao mesmo tempo, tudo era diferente, e nada parecia ter mudado.

Agradeci à enfermeira, e saí do Museu da República segurando o algodão no meu braço, o único sinal de que algo havia acontecido ali. O sol bateu nos meus olhos e fiquei desorientado. Por um segundo senti todos os possíveis efeitos colaterais da vacina, febre, dor no corpo, cansaço, dor de cabeça, mas logo passou. Olhei pro céu azul e senti grossas gotas de chuva sobre o meu rosto. De onde viriam? Tive noventa e sete porcento de certeza que as coisas iam melhorar. Ainda havia, óbvio, muito o que esperar antes de melhorar, mas, definitivamente, menos que ontem; um dia a menos, pelo menos. E um dia, às vezes, faz toda a diferença. Hoje fez.

Os Segredos do Universo

No fim do século XX eu estava virando um adultinho. Tinha 3 empregos legais mas mal pagos; o dinheiro era curto, mas eu conseguia morar sozinho num quarto e sala de Copacabana; e sofria existencialmente para terminar na faculdade os dois créditos que me dariam o diploma que nunca quis. Meus dias eram ao mesmo tempo lotados de atividades e oportunidades para o ócio. Claro que eu reclamava da vida, quem não reclama?, mas eu tinha consciência da rara paz de espírito que me acometia naquela época. Porém a paz de espírito do meu vizinho parecia muito maior e isso me incomodava horrores.

Quando o dia terminava ou na troca de turno entre um emprego e outro, eu sempre esbarrava com ele no botequim embaixo do nosso prédio. De short, chinelos e sem camisa, jogando porrinha no balcão pra não pagar cerveja, expediente ao qual também recorri diversas vezes, ele me notava, a gente balançava a cabeça um pro outro e sorria. Eu, timidamente; ele, de forma ostensiva, quase pornográfica.

Quem podia lhe culpar por ser tão feliz? Pelo que o Bigode, o porteiro da noite, fofocou, ele estava com o boi na sombra. Dependendo da semana ele era o modesto herdeiro de uma fortuna, um contrabandista sob proteção à testemunha ou um aposentado de um banco estadual do sul por conta de uma doença crônica, tipo epilepsia ou algo que o valha.

Inválido ou não, ele era o retrato da saúde; sempre bronzeado, com aquela eterna pinta de estar indo pra ou vindo da praia. Apesar de odiar ir à praia, eu o invejava. Se eu tinha paz de espírito no meio de um furacão, ele a aproveitava numa rede em frente a uma praia deserta vendo o sol se pôr e curtindo a brisa que vem do mar para terra encerrando o dia. Enquanto eu era um artigo técnico sólido numa revista chata, ele era poesia escrita por Vinícius de Moraes num guardanapo de bar.

Apesar dessa inveja, a gente se dava bem. Dividíamos umas cervejas no botequim e ocasionalmente nos ajudávamos em pequenas tarefas um na casa do outro. Na verdade, eu sentia que ele tinha algo a me ensinar, mas eu tinha vergonha de pedir que ele me contasse o segredo do universo de viver com tranquilidade sem fazer nada e sem ter uma forma visível de renda. Eu queria que ele me ensinasse a ser um copacabanense de verdade. Um dia quase rolou.

Eu estava saindo de casa numa noite de sábado pra um programa chato mas obrigatório quando esbarrei com ele apoiado no umbral da sua porta tremendo.

– Opa, cê tá bem?
– Tô, não. Ajuda? Ajuda…

Corri em sua direção e o apoiei. Ele tremia bastante e jogou seu peso em cima de mim em busca de apoio. Apontou para o sofá me indicando para onde queria ir. Eu o deitei e fiquei parado no meio da sua sala sem saber o que fazer:

– Posso te ajudar com mais alguma coisa? Quer que eu ligue pra alguém?
– Isso, ligar pra alguém. Ligar…

Indicou onde estava o telefone e me pediu pra discar. Começou a ditar um número longo, com certeza um interurbano, o qual errou várias vezes. Enfim consegui que alguém atendesse e lhe passei o telefone. Ele começou a bater boca com alguém do outro lado da linha, aparentemente recuperado, e, apontando pra cozinha, me disse:

– Se quiser, pega um uisquinho aí no balcão.

Ele não estava passando mal. Estava bêbado. Menos mal.

Aceitei a sua oferta e fui encher um copo. No balcão, além da garrafa e dos copos, tinha uma pilha de livros. Todos do mesmo autor: ele. Nas contracapas, a mesma foto: ele, bronzeadíssimo, de camisa havaiana, óculos escuros com uma praia idílica ao fundo. O fotógrafo realmente captou a sua essência.

Ele desligou o telefone e fiz a pergunta idiota que precisava fazer:

– São seus?
– Sim, todos eles- respondeu vindo pra cozinha se servir de mais um copo.
– São sobre o que?

Ele encheu um copo generoso, tomou um belo gole e sorriu como se me contasse um segredo:

– Não dá pra ver? Autoajuda.

Os títulos não deixavam dúvida: Como viver sem ninguém lhe aporrinhar, Ponha a culpa nos outros, Escape dos seus credores sem medo, e assim por diante.

– São à sério?
– Claro, eu faço o que professo. É preciso liderar pelo exemplo.

Dei uma diagonal nos títulos e 3 me chamaram especialmente a atenção. Parecia ser uma trilogia chamada Os Segredos do Universo e cada um dos volumes tinha um subtítulo mais instigante que o outro: Como não Fazer Nada, Como Viver sem Dinheiro e Como não se Preocupar com o Futuro.

– E essa trilogia? É sobre o que?
– Como posso resumir? Bom, a maioria dos nossos problemas surgem pois temos a necessidade de validação externa. Queremos que pessoas, grupos e instituições nos amem. Esse amor vem na forma de símbolos sociais, como compromisso, status e dinheiro. Porém, mesmo quando nos entregam esses símbolos falsos de afeição, continuamos ansiosos, insatisfeitos e com medo que esse amor não seja real. Os livros falam sobre como não fazer nada pelos outros, já que eles não merecem sua atenção; como não se preocupar com dinheiro, a medida enganosa do amor capitalista; e como cagar pro dia seguinte, afinal, ele pode nem chegar.
– Uau- foi tudo o que pude dizer.

O interfone tocou e ele foi atender:

– Fala, Bigode. Quem é? Pode mandar subir.

Desligou o interfone e, com pressa, veio apertar a minha mão:

– Cara, muito obrigado pela ajuda. Agora você precisa ir que eu vou atender uma “pessoa”. Sacou? Passa outro dia pra gente tomar mais um uísque e conversar.

Antes que pudesse falar qualquer coisa, estava no corredor. Meio desorientado, retomei o rumo pro meu programa de sábado e, no caminho para o elevador, passei pela “pessoa” loira e mignon, metida num vestido preto de látex obscenamente justo, que iria lhe visitar. Com certeza ele teve um fim de sábado bem melhor do que eu.

Nas semanas seguintes fiquei com os seus livros na cabeça. Será que ele realmente explicava como viver como ele, sem fazer nada, sem se preocupar com dinheiro ou com a aceitação alheia ou mesmo se estaria vivo amanhã? Tomei coragem e bati na sua porta trazendo uma garrafa de uísque. Uma velhinha, que eu nunca tinha visto, atendeu. Perguntei dele e ela me esclareceu:

– Ah, meu filho, eu não sei. Mudei semana passada e já não tinha nada nem ninguém por aqui. O pessoal da imobiliária disse que o inquilino anterior sumiu sem avisar e deixou um bando de dívidas de aluguel e condomínio. Desculpa não poder ajudar.

Perguntei se por acaso o morador tinha deixado algum livro pela casa e ela lamentou, mas disse que não.

– Melhor sorte da próxima vez- ela resumiu minha cara de frustração.

Lá se foi a minha chance de conhecer Os Segredos do Universo nessa encarnação.

Às vezes, ainda hoje, 20 anos depois, num fim de dia duro e cansativo, eu me lembro desse vizinho, e vou nos sites de livros usados procurar pelos Segredos do Universo. Estou, como todos, em busca de uma saída, em busca de esperança, em busca de ajuda, mas até hoje nunca os encontrei. Esses foram segredos que o século XXI nos fez esquecer.

Não é você; sou eu, o comunista

Era batata. Sempre entre a quinta e a sexta cerveja, o espírito liberal na economia e conservador nos costumes, que possuiu seu corpo depois de uma desilusão amorosa, tomava controle. E não importava o assunto; futebol, novela, política, desenhos animados, tudo era justificativa para ele começar a desfiar o seu rosário do mal.

– Tá vendo só?- ele apontava algo que o desagradava.- Tá na cara que (insira posição política, orientação sexual, opinião artística) é influência de (comunismo, marxismo cultural, ideologia de gênero, organizações Globo, vereador de esquerda do Rio de Janeiro, ). O mundo está perdido. Perdido!

Eu discordava totalmente das suas opiniões. Primeiro porque eram basicamente preconceituosas, racistas, homofóbicas e reacionárias; segundo, pois eram burras ou simplesmente não faziam sentido. No início, por boa vontade, eu até tentava trazê-lo à razão, mas era inútil:

– O teu problema é que você lê demais- ele se defendia.- Todos esses conhecimentos de esquerda acabam te deixando mole e hippongo. Empatia é o caralho! O mundo é uma guerra. Uma Guerra!

Eu tentava relevar. Achava que era uma fase. Depois que a dor de cotovelo passasse e ele arrumasse uma nova namorada, as coisas iam melhorar. O tempo passou, ele eventualmente arrumou uma namorada, mas a doideira permaneceu e ele acabou terminando o relacionamento por conta das suas próprias fantasias políticas.

– Vê só se eu ia aceitar aquilo- ele contava a sua versão da separação.- Ela (escolha: votava no PSOL, lia Martha Medeiros, assistia novela da Globo, curtia Pablo Vitar). Isso não é pra mim. Eu preciso de uma mulher cristã. Cristã.

Dizia o homem que quase foi reprovado no catecismo.

Com o passar do tempo, como era impossível conviver com ele e eu não sabia se devia dar fim a uma amizade de quase 40 anos, comecei a me afastar. Ele chamava pra tomar cerveja na sexta, eu inventava um compromisso; dizia que ia passar no meu trabalho para a gente voltar juntos, eu ficava no escritório fingindo fazer serão; ele aparecia na porta do meu prédio… bom, nesse caso não conseguia me safar e acabava sendo obrigado a ouvir mais uma vez a sua cantilena protofascista.

– Eles querem acabar com o Brasil- ele profetizava.- Querem acabar com a propriedade privada, com a religião, com a nação. Querem nos tornar comunistas. Comunistas!

Numa última tentativa, busquei entender melhor a sua visão de mundo:

– Mas o que você quer dizer com isso?
– Como assim?- ele se espantou de eu ter reagido.
– O que seria esse tal comunismo?
– Ah, deixa eu te explicar. Primeiro todo mundo vai ser igual. Se você é mais competente que os outros, vai receber a mesma coisa. O preguiçoso e o sujeito bem sucedido, como eu, ganham o mesmo. Acabou a competitividade. Ninguém tem mais estímulo para ser mais produtivo. Totalmente igualitário. Igualitário!

Como considero a produtividade um mito tóxico e tenho certeza absoluta que se a humanidade fizesse menos viveria melhor, confesso que o começo me agradou.

– Continua. Continua.
– Vou continuar. Imagina só, viver num mundo que considere tudo válido. Todas as religiões e crenças têm o mesmo valor. Mas ao mesmo tempo considere que essas crenças não devem interferir na vida comunal. Todo mundo acredita no que quer, mas tem que viver em comunidade de forma secular. Um mundo sem Deus. Sem Deus!

Mais um ponto pro tal do Comunismo. Viver com pessoas que têm o direito de acreditar no que querem e sabem que aquilo é uma crença, e não uma realidade, é realmente tentador.

– E pra piorar,- ele se adiantou sem eu pedir- acabar com as nações. Todo o planeta, todo universo sob um só governo, uma só bandeira, desrespeitando as tradições locais e nacionais e ignorando as histórias e glórias das nações soberanas. Uma anarquia global. Global!

Essa me remeteu à ficção científica que lia na infância. Uma utopia, um mundo unido, sem guerras motivadas pela ambição de poucos ou justificadas pelas fantasias de destinos manifestos de países inventados. Um mundo igualitário, secular e global. Ele abriu os meus olhos:

– Sabe, cara,- eu declarei- acho que eu sou comunista.

Ele riu amarelo, meio fingindo que era brincadeira, percebeu que eu falava sério e mudou de assunto. Pela primeira vez em muito tempo, o espírito que possuía seu corpo se aquietou e pudemos ter uma conversa normal, entre seres humanos, e não entre estereótipos políticos da sociedade brasileira do século XXI.

Isso foi antes da pandemia e ele não mais me ligou. Nem eu o procurei. Vez ou outra ele me manda uma mensagem querendo chamar para uma aglomeração, mas eu recuso sem explicações e ele entende: sou comunista.

Não sei como será após a pandemia. Não sei se a amizade irá sobreviver ao meu comunismo ou se ele vai finalmente ter superado o coração partido e tirado essa mistura fatal de Paulo Guedes e Bolsonaro do seu coração. Se ele não mudar, pelo menos tá aí uma coisa que ele pode botar de verdade na conta do comunismo: o fim de uma amizade.

A Alta

Depois de 74 dias internado, meu pai recebeu alta. Mesmo afastado da família, por razões longas demais para esse texto curto, acompanhei o processo. Minha irmã fazia questão de me dar informes de hora em hora por áudio, texto e vídeo. Eu ignorava a maioria.

A notícia da saída do meu pai do hospital foi mais difícil de ignorar: 34 mensagens e 7 ligações em menos de 2 horas. A última, eu atendi. Recebi essa nova informação com a mesma animação que recebi as outras: nenhuma. Minha irmã, por outro lado, estava esfuziante. Considerava que essa seria uma oportunidade ótima para uma reconciliação:

– Vem receber ele em casa. Deixa essas amarguras no passado e vem dar um abraço no papai. Vai ser uma surpresa muito legal. Aposto que ele vai adorar.

Tinha certeza que não, mas menti e disse que ia pensar. Acabou que não pensei e, talvez por isso, fui recebê-lo.

Cheguei no prédio na hora combinada, cumprimentei alguns porteiros da velha guarda, e subi com muita resistência para o apartamento dos meus pais. Todas as memórias evocadas pelos corredores escuros do edifício me diziam que eu não deveria ter vindo. Era tarde demais para ouvir os seus conselhos.

Toquei a campainha e minha mãe abriu a porta. Jogou os braços ao céu como se estivesse recebendo Jesus no domingo de Ramos.

– Agora, sim, esse é um dia abençoado. A família estará unida! Finalmente, unida.

Ela me abraçou apertado e me deixou sentado no sofá, enquanto resolvia as últimas providências para a chegada do meu pai. Na sala, a TV passava um programa sensacionalista que se pretendia noticioso. Espirrei enojado. O mofo e a poeira continuavam os mesmos. Assim como os seus péssimos gostos e posições políticas.

Barulho na porta. Minha irmã surgiu empurrando meu pai numa cadeira de rodas.

– Ele chegou! Ele chegou! – ela gritava.
– Louvado seja o Senhor- minha mãe respondia.- Ele ouviu as minhas preces. Louvado seja Deus.

Fiz menção de me levantar, mas quando vi meu pai, com o rosto caído, desisti. Ele não me percebeu, ocupado em não ouvir as louvações das duas; o que era basicamente impossível. Para piorar, do corredor do prédio, surgiram várias pessoas estranhas, provavelmente vizinhos, de chapéus de festa, carregando bolas de encher e soprando pequenos apitos.

– Ele é um bom companheiro, ele é um bom companheiro, ele é um bom companheeeeeeirooooo! Ninguém pode negar.

Depois do coro improvisado, forçando uma intimidade inexistente, os vizinhos passaram pela cadeira rodas cumprimentando meu pai com beijos e abraços.

– Que susto, hein?
– Que bom te ter de volta.
– Não faz mais uma dessas, não.
– Você ficou em qual hospital, mesmo?

Excitadas, minha mãe e minha irmã jogavam os braços pro alto, entremeando detalhes vexatórios sobre a internação e os problemas de saúde do meu pai com gritos de “Aleluia”.

Os vizinhos, quando me notaram, me cumprimentaram à distância e de forma tímida, mas não sem tentar me constranger:

– Olha, quanto tempo?
– Você engordou, hein.
– Tá ficando a cara do seu pai.
– Por que você sumiu por tanto tempo?

Naturalmente, aos poucos, a festa improvisada se transferiu para a cozinha e todos esqueceram de mim. E de meu pai. Ele, na sua cadeira de rodas, eu, no sofá. Abandonados. Como sempre.

Finalmente, na sala vazia, meu pai achou seguro levantar os olhos e me viu. Não esboçou nenhuma reação, assim como eu, acho, não esbocei. Nos olhamos por alguns momentos trocando telepaticamente ofensas e memórias ruins, até que eu desisti de participar desse jogo.

Fiz menção de levantar do sofá para escapar da sala, mesmo temendo as conversas e gritos que vinham da cozinha, mas meu pai me impediu. Em silêncio, balançou a cabeça em negativa e baixou os olhos. Ele tinha razão, lá ia ser pior. Eu assenti com a cabeça, sentei novamente no sofá e peguei o controle remoto para aumentar o volume da televisão e tentar abafar os sons da cozinha. Foi inútil, mas ninguém pode dizer que não tentamos.

4:33

O sinal fechou.

Ele freou o carro em cima da faixa. Por pouco não conseguiu passar. Bufou e checou o celular. Ainda nenhuma mensagem, mas ele sabia que ela ia mandar uma. Ou, pior, ligar. “Cadê você? Você não vem?”. “Sim, sim. Eu vou, eu vou” ele responderia.

Olhou pro relógio. Sete e onze da noite. Pelo que lembrava, e já tinha cronometrado, esse sinal demorava quatro minutos e trinta e três segundos para abrir. Porquê? Não tinha a menor ideia. Só sabia que esse era o sinal mais demorado da cidade. E, o pior, numa rua escura e cheia de árvores. Um perigo.

Por que não arredondar o tempo de espera para baixo ou mesmo para cima? Quatro minutos e meio ou cinco fariam mais sentido. Mas para que as coisas precisam fazer sentido mesmo?

Aproveitando a longa espera, dois meninos surgiram do nada e se posicionaram em frente ao seu carro fazendo malabarismos com bolas. Um terceiro surgiu do lado do carro e bateu no vidro lhe pedindo dinheiro. Ela ligou. Sete e doze. Ele fez sinal para o menino esperar e atendeu:

– Alô.
– Alô, você tá vindo?
– Tô, tô.
– Tá, tá. Só queria saber. O pessoal tá esperando bolo.
– OK. OK. Eu sei.

Desligou. O menino bateu novamente na janela do carro. Ele olhou pra conferir o bolo no banco de trás e percebeu que era o único carro parado no sinal. O show era particular. Fez um sinal para o menino continuar esperando enquanto procurava uns trocados nos bolsos. Os meninos na frente do carro, agora, tinham deixado os malabares de lado, e faziam acrobacias pulando uns sobre os outros e por dentro de bambolês.

Ele achou uma nota amassada no bolso, abaixou o vidro, e a entregou ao menino que foi em direção aos amigos sorrindo excessivamente satisfeito. Ele desconfiou. Tentou mesmo à distância ver de quanto era a nota que tinha entregue. Tinha se enganado, tinha dado dinheiro demais.

Colocou a cabeça pra fora e acenou para o menino voltar. Os três acenaram de volta agradecendo. Estavam sendo sonsos? Ele acenou mais vigorosamente e um dos meninos veio em sua direção enquanto os outros dois buscavam uma garrafa de querosene e tochas.

– Menino, acho que te dei dinheiro demais.
– Deu não, tio. Brigadão.
– Você não entendeu, menino. EU DEI dinheiro demais. Deixa eu trocar essa nota com você.

O celular tocou. Era ela. De novo. Sete e treze. Ele fez sinal pro menino esperar e atendeu:

– O que é?
– Tô só ligando pra te lembrar das velas.
– Não esqueci. Eu sei. Tá comigo.
– Tá, eu só queria dizer…
– Eu sei. Eu sei.

Desligou o telefone e enfiou a mão no bolso, de onde tirou umas moedas, e as entregou ao menino.

– Aqui, ó. Agora me dá a nota.
– Dou, não, tio. Não é justo. Isso é muito pouco.
– É justo, sim. O dinheiro é meu.
– Não é mais. Você me deu.

Enquanto eles discutiam, os meninos na frente do carro, talvez empolgados pela gorjeta polpuda, se preparavam para fazer um show de cuspir fogo. O celular deu um toque. Ela mandara uma mensagem de texto. Sete e quatorze. “Amor, não fica chateado. Só falo pelo nosso bem”. Ele se irritou:

– Aqui, ó, menino, não quero mais discutir. Me dá a nota e fica com essas moedas.
– Quero, não. Eu te devolvo,se você me der pelo menos metade da nota.
– Tá doido? Você não vê que eu tô com pressa?
– O sinal demora, tio. Pode procurar.

Os meninos começaram a cuspir labaredas um em direção ao outro e queimavam as pontas das folhas das árvores da rua que desciam sobre o asfalto como vagalumes. Ele procurou nos bolsos, abriu a carteira e nada. Não tinha nenhuma nota pra oferecer pro menino.

– Achou, tio?
– Não achei, não…
– Então, tio, nada feito.

O menino sorriu e, debochado, fez uma mesura de agradecimento. Isso não caiu bem. Ele fez menção de gritar pela janela do carro, mas se assustou com as línguas de fogo que saíam das bocas dos meninos. O menino com a nota agora a exibia aos amigos vitorioso, dançando entre eles enquanto cuspiam fogo como dragões. O telefone tocou. Era ela de novo. Sete e quinze. Faltava pouco pro sinal abrir. Ele atendeu:

– Que diabo! O que você quer agora?
– Amor, você tá chateado comigo? Você sabe que eu te amo…

Na frente do carro os três meninos dançavam como menestréis medievais cuspindo fogo e exibindo o dinheiro que tinham ganho.

– Amor, tá tudo bem? Por que você não me responde? Você comprou o bolo de sorvete que a gente combinou?

Ele chegou ao seu limite. Revoltado, atirou o celular pela janela em direção ao menino que dançava com o dinheiro. O menino, com presteza, se abaixou e o celular foi direto no queixo do outro menino que cuspia uma labareda para o céu. O fogo, como uma fênix, fez uma curva atingindo a copa das árvores e retornando para a cabeça do menino que começou a arder como uma das velas do bolo que ela esperava receber.

À distância, paralisado, ele ouviu o telefone tocar insistentemente, enquanto galhos em chamas caíam sobre o carro, derretendo o bolo de sorvete, e os meninos tentavam acudir o companheiro que pegava fogo. Não atendeu.

O sinal abriu.