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Dez de paus ou a Lista de Afazeres para as (não) férias

Dez de Paus

  • Verificar os azulejos e tijolos no quartinho dos fundos que sobraram de uma obra da qual não fizemos parte
  • Pedir para os porteiros levarem os azulejos, se eles não servirem para terminar aquela obra da cozinha de 3 anos atrás, que o condomínio ainda não terminou
  • Carregar os azulejos (surpresa!, não servem) até a porta de serviço para os porteiros levarem
  • Comprar emplastro Sabiá para a dor nas costas
  • Ir no médico pra ver essa dor nas costas que não passa
  • Marcar massagem Ayurveda para diminuir a dor nas costas
  • Remarcar a massagem para depois das férias (surpresa!, a massagista esqueceu das próprias férias)
  • Comprar mais emplastro Sabiá
  • Marcar data com o porteiro chefe para o condomínio finalmente terminar a obra feita na cozinha
  • Lembrar ao porteiro chefe da data marcada na semana que vem
  • Remarcar a data marcada para depois das férias (surpresa!, ele não lembrou)
  • Ponderar se a dor nas costas é física, mental ou espiritual
  • Tirar um tarot pra tentar definir a origem da dor e fazer uma reza braba só por prevenção
  • Pesquisar o que significa o dez de paus (surpresa!, não foi surpresa alguma)
  • Buscar a menina na casa da amiga em Saquarema
  • Comprar um apoio lombar para aguentar a viagem de ônibus
  • Ativar plano B: emplastro Sabiá
  • Levar a menina e a amiga no shopping e esperar as duas passearem
  • Tentar encontrar um lugar onde dê pra esperar confortavelmente
  • Esperar nas cadeiras duras do coworking elas continuamente remarcarem o horário de ir embora
  • Sim, mais um pouco de emplastro Sabiá
  • Tentar organizar os horários de estudo e sono da menina antes de ela voltar a estudar
  • Passar as tardes forçando ela a fazer os deveres e as noites tentando fazer ela dormir
  • Dormir no sofá da sala para vigiar a hora em que ela vai dormir
  • Ficar com insônia enquanto o resto da casa dorme
  • Renovar o estoque de emplastro Sabiá
  • Marcar o conserto das persianas
  • Pedir aos porteiros para levarem os entulhos que sobraram do conserto das persianas
  • Carregar, eu mesmo, os entulhos do conserto até a porta de serviço
  • Comprar mais emplastro Sabiá
  • Marcar uma outra massagista Ayurveda para dar um fim na dor nas costas
  • Cancelar a massagem marcada (a segunda massagista, surpresa!, teve um imprevisto no dia)
  • Adivinha? Mais emplastro Sabiá
  • Dar uma olhada no e-mail do trabalho para adiantar o que for possível no dia antes de voltar
  • Suspirar ao ler os e-mails e jogar na megasena, torcendo pra não precisar mais ir trabalhar (surpresa!, não acertei uma dezena sequer)
  • Verificar o que faltou de fazer nas férias e colocar na lista das férias que vem
  • Levar a menina na escola e ir trabalhar
  • Não começar mais férias com listas de afazeres (surpresa!, não vai rolar)
  • Ah, pesquisar se dá pra ter overdose de emplastro Sabiá

A menina no espelho

Toda noite, um pouco antes da hora de dormir, ela se colocava na frente do espelho, pendurado atrás da porta do seu quarto, para tentar mais uma vez se decifrar. Olhava pro seu rosto como se olhasse para uma desconhecida, perguntando-se se ela era atraente ou não. Sim, sim, respondia a si mesma, com um sorriso de canto de boca, quase querendo não acreditar no que dizia.

Fingindo ainda não estar convencida, se inspecionava da cabeça aos pés, em busca de uma verdade que sabia nunca poder encontrar. Começava pelos cabelos, pretos e curtos na altura dos ombros, que lhe davam um ar jovem apesar de não tanto quanto gostaria, nem tanto quanto ela poderia aparentar. Seus olhos, escuros, eram firmes e seguros, guardando a sua inexperiência e inocência para poucos que um dia viriam, ela esperava, a merecê-la. Do torso coberto por sua longa camiseta de dormir, que escondia as formas que, sabia, um dia, provocariam paixão e saudade, ela corria seus olhos para suas coxas, tenras e bronzeadas, que respondiam com eletricidade estática ao delicado deslizar dos seus dedos. Os joelhos, feios, sempre eles, pareciam duas velhas rabugentas, rememorando com amargura as coxas que um dia suportaram. E, enfim, os pés, artesanalmente pequenos, eram ao mesmo tempo adequados ao seu tamanho e diminutos para todas as tristezas que carregavam.

Enfim satisfeita com a promessa da sua própria beleza, ela ouvia a rua, com o som de risos e buzinas, lhe avisar do fim da sua inspeção diária e de que havia vida além do seu próprio espelho. Disso ela sabia muito bem e ansiava pelo momento em que estaria pronta para abraçar essa liberdade, mas, no momento, tudo o que lhe restava, ou bastava, era o espelho; por enquanto, até quando?, era só ela e o espelho, ou, quem sabe, só o espelho.

Recordações do Futuro

Quando chegar nas Barcas, ela responderá aos insistentes pedidos dos amigos para sair na primeira noite do feriadão com um enfado ensaiado: “Esse FDS não dá, gente. Vou ter que visitar os meus pais. Mas devo voltar logo. Affff. :-/”.

Passará pela catraca como se nunca tivesse deixado de morar na ilha, e cumprirá o seu ritual alimentar pré-embarque: um misto quente gorduroso e uma coca normal.

A Barca chegará, ela aguardará as prioridades embarcarem e irá para o lado esquerdo do segundo andar para acompanhar a vista do Rio enquanto se movimenta pela Baía de Guanabara.

Quando a Barca passar por debaixo da Ponte, instintivamente tirará uma foto e postará nas suas redes sociais, com a mensagem: “Partiu Ilha”. Esse aviso servirá tanto aos amigos para não procurá-la, como aos pais para irem buscá-la.

A viagem será, como sempre tranquila, mas ela, como sempre, contará, como carneirinhos, a quantidade de coletes salva vidas visíveis.

Quando a Ilha estiver à vista, os visitantes de primeira viagem, pouco acostumados com suas belezas, irão para as janelas apreciar a mini torre da Mesbla, a praia da Imbuca, o Iate Clube, ansiosos por pisar logo em suas terras. Ela, também ansiosa, resistirá à tentação de agir exatamente como os visitantes.

A Barca atracará e ela já poderá ver os pais acenando da praça. Com um enfado ensaiado, ela suspirará alto para que os que a cercam na Barca ouçam seu falso desagrado.

Assim que sair da Estação, ela será beijada, abraçada, e soterrada de perguntas dos pais:

— Como está? E os estudos? E o trabalho? E a casa nova? E os amigos? E o amor?

Fazendo sua melhor imitação de si mesma adolescente, ela vai responder:

— Tudo bem. Normal. Legal. OK. Bem. Ai, que brega, vocês…

Pra não perder a tradição, mais uma surpresa. Em vez de pegarem um Tuc Tuc para chegar na casa dos pais, o pai mostrará, todo orgulhoso, o Tuc Tuc que comprou para circular por conta própria na ilha. Ela revirará os olhos e suspirará num discreto exagero:

— Vocês têm cada uma…

Ela sentará com a mãe na parte de trás e o pai as conduzirá pela orla. Pra aproveitar esse primeiro passeio, não irão direto para casa, mas passarão por todas as praias. Pela Imbuca, pela Coqueiros, pela Moreninha, e pararão na praia José Bonifácio para comer um pastel e tomar um mate. Quando retomarem o trajeto e passarem na pedra dos namorados, a mãe irá cutucá-la.

— Ai, mãe, me deixa.

Chegarão na casa sempre em construção. Aberto o portão, os gatos, velhos amigos, a reconhecerão e esfregarão seu cheiro em suas pernas. Isso a fará sorrir. Um pouco, mas o suficiente para que os pais notem.

A mãe arrumará suas coisas no quarto e irá mostrar todas as novidades que fizeram na casa desde que ela veio da última vez: o chuveirão perto da piscina, a sala de TV do lado da biblioteca, e uma extensão do galinheiro que os gatos adoram invadir. Os pais, surpresos com o tanto que construíram e sem o menor sinal de soberba, só dirão:

— Caramba, você tem que vir aqui mais vezes…

Ela concordará, mas não dirá nada pra não dar o braço a torcer.

O pai servirá seu famoso chili, contará velhas histórias que fazem todos rirem e chorarem, e eles comerão até se fartar. Depois do jantar, observando as estrelas se moverem preguiçosamente, eles ficarão conversando no quintal sobre tudo o que ela disse que não queria falar a respeito: sobre como ela está, sobre o estudo, sobre o trabalho, sobre os amigos e até sobre os amores. Enfim, sem perceber, ela dormirá encostada no ombro da mãe, como fazia quando criança. O pai, apesar das costas, da idade, do joelho, das articulações, e de tudo mais que poderia impedi-lo, a levará no colo até a cama. Ela fingirá dormir por todo o trajeto.

A mãe a cobrirá, lhe dará um beijo na testa, e fechará a porta.

Quando perceber que está realmente sozinha, ela pegará o celular e mandará, sorrindo, mais uma mensagem de enfado ensaiado aos amigos: “Pô, gente, o lance aqui pegou. Acho que vou ficar o feriadão inteiro nos meus pais. Que saco. Aff. :-/”

A falta que faz uma livraria em Paquetá

Pra mim era inacreditável que Paquetá, berço do Romance Brasileiro, não tivesse uma livraria sequer. Nem uma banca de jornal, ou, ao menos, um display na estação das Barcas vendendo edições de A Moreninha, tinha.

Quando externei esse espanto ao dono da pousada, ele me corrigiu:

— Paquetá não tem livraria, mas tem uma livreira.

Antes que eu pedisse, ele explicou:

— Parece que ela já teve loja há muito tempo e vende os livros direto da sua casa. Não é bem uma livraria, mas ela é uma livreira. Entendeu?

Entendi. Pedi o endereço. O dono da pousada disse que achava que ela morava perto do Clube Municipal mais ou menos na altura da Biblioteca Pública, mas não tinha certeza. Como acontece em todos esses casos, me sugeriu procurar na Internet.

Não tinha uma página, nem a informação da existência de uma loja de livros em Paquetá, afinal, não era uma livraria que eu procurava, mas uma livreira. Por sorte, no Estante Virtual havia um perfil com poucos livros e, a partir dele, eu, no aplicativo de mapas, achei uma referência exatamente na altura indicada pelo dono da pousada.

Pedi sua bicicleta emprestada e parti em direção à loja, quer dizer, à livreira. Mesmo com o mapa, me perdi, e fui obrigado a atravessar o parque onde se encontra a Pedra da Moreninha, o que considerei um bom agouro.

Quando avistei o Clube Municipal, tive certeza que em breve chegaria ao meu destino. Estava enganado. O número do mapa não existia e eu não consegui identificar dentre as casas fechadas qual delas seria a casa da livreira.

Pra não perder a viagem, resolvi bater palmas na frente da única casa que vi ter uma estante com livros. Em vão. Ninguém me atendeu. Não desisti e continuei. Acabei chamando a atenção de um vizinho que me atendeu do seu muro.

— Tá procurando quem?

— A livraria, quer dizer, a livreira. Me disseram que ela vive aqui.

— Você tá falando da Myrian?

— É- fingi que a conhecia.- Sabe que horas ela abre a loja?

— Sei não. Eu sei que ela tem um bando de livros, mas, pra dizer a verdade, nem sabia que era livraria.

— Não é livraria, mas ela é livreira- tentei explicar e acabei complicando.

— Seja como for, amigo, deu azar ela tá viajando e não sei quando ela volta.

*

Voltei à Paquetá alguns meses depois, e ainda estava com a ideia da livraria na cabeça. Dessa vez, fiz meu dever de casa e percebi que algumas coisas tinham mudado. Ela não era só mais uma livreira. Constava uma loja num outro endereço, agora mais perto das barcas, mas não havia outra forma de contato que não pintar lá.

Deixei passar uns dias e apareci na frente da casa. Mais uma vez fechada e sem campainha. A diferença é que dessa vez não havia livros à vista, mas, em compensação, tinha uma grande quantidade de animais de estimação de todos os tipos no jardim que dava pra ver através das grades do muro.

Sem muita esperança bati palmas até cansar, pois, abafadas pelos latidos e miados dos animais de estimação, não houve vizinho para escutar eu aplaudir novamente uma casa vazia.

*

Quando retornei à Paquetá pro ano novo, na internet, além do endereço – ele continuava o mesmo-, já tinha um telefone com, pasmem, whatsapp. Pra não dar sorte ao azar, assim que cheguei à ilha já mandei mensagem:

<Opa, bom dia, estava querendo conhecer a livraria. Vão estar abertos no fim de ano?>

Depois de um dia, nem duplo tique tinha. A mensagem tinha sido enviada, mas não tinha sido recebida.

Passei novamente na porta do sebo, mas fiquei com vergonha, ou cansaço de novamente aplaudir a minha persistência em conhecer uma livraria. Afinal, essa era uma relação que estava tendo unilateralmente com alguém que eu nem sabia se existia, e, se existisse, nem sabia da minha existência.

O ano virou, e precisei voltar ao continente. Na Barca de volta, enfim, a resposta:

<Oi, desculpa a demora, meu celular quebrou. Ainda está na ilha?>

Não, não estava, mas ia voltar.

*

Quando voltei uns 3 meses depois, já estava trocando mensagens com a Myrian há um tempo. Ela até mencionou achar que era curiosa essa confusão entre livreira e livraria, e contou que, quando o José Bonifácio foi exilado em Paquetá, sua biblioteca foi chamada de livraria, não por ser um comércio, mas por ser uma grande quantidade de livros: uma livra-ria.

A pressa e a ansiedade de conhecer a loja estavam, por assim dizer, controladas. Assim deu pra chegar com calma, e uns dois dias de pouso na ilha, depois de um almoço no azulzinho, fui, enfim, visitar a livraria e a livreira.

A casa continuava na mesma rua, mas tinha mudado pro outro lado. A mesma numeração era compartilhada por três casas diferente, mas a dela, a Myrian informou, era a azul.

Parei na frente do portão de ferro e os cachorros vieram logo me receber. Nem precisei tocar a campainha, ou bater palmas. Alertada pelos latidos, Myrian apareceu na porta da casa e a abriu:

— Enfim…

— Enfim.

Entrei.

Passagem só de ida para Pasárgada

Um dia vou fechar essas portas pra sempre. Pra nunca mais voltar. Mas não farei alarde. Sairei daqui como se nunca fosse partir, como se nunca tivesse vindo pra cá.

Quando esse dia chegar, pela última vez, acordarei de madrugada, cansado, mas sem conseguir voltar a dormir. Me esgueirarei, na ponta dos pés, do quarto para a sala, carregando um cobertor quente demais para o calor de todos os dias, e os livros que quero ler mas não tenho paz de espírito pra terminar. Gritarei em silêncio, pedindo socorro, pedindo ajuda, pedindo, pelo amor de Deus, que mais um dia, como tantos outros, não amanheça.

Quando o sol nascer, só pra me contrariar, comerei granola com banana e leite, em pé na cozinha, como se fosse um dia normal de prisão. Preocupado com a saúde física que nunca possuí, colocarei uma bermuda e uma camiseta, e descerei as escadas me equilibrando nos seus degraus estreitos e nos meus quadris tortos.

Na portaria, darei bom dia à senhora insone que aguarda, sentada no banco do jardim, rolando a tela do celular, por uma surpresa que nunca virá. E, assim, ante a minha presença, a porta de ferro do prédio, como mágica, se abrirá.

Atravessarei a praça desviando da massa de sem tetos, esperando em fila, no coreto, pelo pão distribuído pelos movimentos sociais, e me esconderei da tropa de idosos se despedindo, na frente do chafariz, das suas articulações com complexos movimentos de yôga. Na frente do supermercado driblarei os jatos de água das mangueiras e os desastrados entregadores jogando suas caixas de mantimentos sobre mim.

Enfim, na academia, discutirei novelas velhas e problemas novos com as companhias no Pilates que insistem em insistir que tudo já foi melhor, mesmo afirmando que o passado foi pior. Finda a minha força vital, voltarei para a casa lamentando que não tenha ainda adquirido a forma física necessária para fugir correndo do trabalho que finjo (e finge me) amar.

Em casa, me arrumarei para representar (mal) o papel que esperam que eu represente no trabalho. No trabalho, sonharei com o dia em que não precisarei mais dele para representar o papel que esperam de mim em casa. Em casa, de volta, vencerei o cansaço para me cansar de ter esperanças. E assim perco, num suspiro ofegante, metade de um dia.

Vencido, na frente do meu laptop, jogarei minhas esperanças em cursos (úteis e inúteis), livros (lidos ou escritos), contatos (vivos e esquecidos), projetos (paralelos ou diagonais); em basicamente qualquer coisa (real ou imaginária) que prometa me tirar daqui. Perdido, na frente do meu laptop, meu rosto desesperado irá refletir toda a fúria que nesse dia, espero, finalmente, irá me tirar daqui.

Aos poucos, todos em casa, todos no prédio, todos na rua, todos na cidade irão dormir, e, enfim, eu poderei acordar. Sem provisões ou bagagem, correrei pelo Aterro vazio até a estação das Barcas em busca de meu novo lar.

Sem passagem ou uma embarcação que me leve para Pasárgada, com Paquetá vou me contentar. Todos a bordo, a barca estará só me esperando para partir.

Consecutio Mortis

Não tinha dúvidas. Toda morte era um suicídio. Talvez não planejado, mas definitivamente intencional. Afinal, toda morte- sua data, sua forma, sua ocasião- era consequência direta das ações das suas próprias vítimas.

Fumou, câncer de pulmão; bebeu, cirrose; escolheu uma vida de stress, infarto; evitou tudo, morreu de medo de viver. E mesmo quando, dentro da sua lógica, a causa mortis não seguia o caminho óbvio que o suicida escolheu, isso não deixava de ser um suicídio, ou, pelo menos, uma tentativa. Mal sucedida, mas uma tentativa.

Mesmo os acidentes mais aleatórios não escapavam dessa sua conjectura. Por que resolveu passar naquela rua perigosa naquela hora? Por que atravessou fora do sinal? Por que resolveu morar no Rio de Janeiro? Por que decidiu torcer para aquele time de futebol? Por que não mandou seu chefe enfiar o emprego naquele lugar?  Por que não prestou atenção e desviou do carro desgovernado vindo na sua direção? Por que nunca fez nada para se proteger do azar? Porquê? Porquê? Porquê?

Por ser um fiel crente de uma lógica tão fatalista, é de se imaginar que ele fosse um medroso, vivendo escondido, martirizado pela culpa gerada pelas ações que promoviam o fim da sua própria vida, mas não. Ele era um cara consciente das escolhas que fazia e das consequências que teriam na sua vida, era apenas um sujeito livre que vivia em paz.

Por isso, sempre que a dúvida do que fazer surgia, avaliava qual  o custo e a consequência que a ação ou decisão que tomaria teria no seu tempo ou na sua qualidade de vida. Mesmo que algo aparentasse ser inócuo ou saudável, ele sabia, em parte poderia estaria tomando a sua oportunidade de ter uma vida mais rica, mais divertida, enfim, melhor. Enquanto algumas decisões consumiam tempo, ele sabia, outras restringiam experiências.

Assim viveu. Contrabalançando os abusos com os cuidados, sempre equilibrando duração e satisfação, da maneira mais harmoniosa que podia imaginar. Porém, como todo os humanos, suicidas, conscientes ou inconscientes, ele, um dia, morreu. Mas soube estender a sua vida nas histórias que deixou, na sua filosofia bizarra, e na lápide que planejara. Na fria placa de mármore, não quis que fosse gravado nem seu nome, nem as datas que marcaram a sua passagem sobre a terra. Sobre ela, pediu que fosse escrito apenas:

TUDO É SOMA ZERO
MAS HÁ ZEROS E ZEROS

Sim, era um suicida, como todos nós, mas sabia viver.