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Acima das nuvens

Quando Luna o expulsou do quarto, no meio da noite, seu primeiro pensamento foi ir embora, ir embora de Copacabana.

Ele subiu ao terraço do hotel e acionou o aplicativo para chamar um dos táxi voadores que cortavam os céus da cidade.

Apesar da chuva torrencial, para a sua sorte, os táxi voadores ainda estavam em atividade. E, mesmo sendo tarde da noite, os preços indicados pelo aplicativo estavam, senão baratos, justos. Na verdade, qualquer preço seria barato para ir para longe dalí, para ir para longe de Luna.

Mais rápido do que esperava, o carro voador varou a parede de nuvens e, trazendo uma penca de gotas e umidade, estacionou suavemente bem na sua frente.

O piloto abriu a porta e o convidou a entrar. Ele, com o rosto molhado de chuvas e lágrimas, entrou no táxi, sem cumprimentar o aviador. Sentou-se no banco de trás, amuado, e contou os segundos até o carro decolar.

– A noite está linda- o aviador puxou conversa.
– Onde? Onde está essa beleza toda? – ele respondeu reativo.
– Acima das nuvens. Acima das nuvens dá até pra ver a Lua.
– Cansei da Lua. Cansei do Luar.
– Então, o senhor prefere ir pelo meio das nuvens?
– Pode ir. Não é essa turbulência que vai me derrubar.

Dr. Molon e Mr. Moro

No caminho para o trabalho, Marco esbarrou com um bando de gente balançando bandeiras de apoio à candidatura de André Ceciliano ao senado. Bem ciente das contradições do PT carioca, ele, só de zoação, resolveu gritar “Molon!” pra dar umas boas risadas. Para seu espanto, quando abriu a boca, do fundo da sua garganta saiu um longo e sonoro:

– Mooooro!

As pessoas à sua volta se viraram procurando quem poderia ter dado esse grito tão sem propósito em pleno Largo da Carioca. Profundamente envergonhado, e sem entender como esse engano podia ter acontecido, ele tampou a boca com a mão e, de cabeça baixa, foi para o trabalho quase em marcha atlética, esperando não ter sido reconhecido.

O dia no trabalho foi bem pesado, mas o ato falho da manhã não lhe saiu da cabeça. Por que diabos teria gritado “Moro”? Fazia tempo que nem pensava no ex-juiz curitibano mezzo-bolsonarista mezzo-soprano. O que esse engano podia significar? Pensou em comentar com alguns amigos do trabalho, mas ficou com medo de escandalizar os progressistas ou, pior, aproximar os liberais na economia e conservadores nos costumes que escondiam seu fascismo atrás do discurso “não converso sobre política”. Segurou a onda, ficou quieto e guardou o assunto para falar com a Suzette quando chegasse em casa.

Durante o jantar, enquanto comiam os restos de pizza do dia anterior, ele finalmente tirou do seu peito o peso do acontecimento da manhã:

– Pô, Suze, nem imagina o que aconteceu hoje. Eu vi uns caras apoiando o André Ceciliano e resolvi gritar o nome do Molon pra tirar uma com eles, mas acabei gritando Moro. Que louco, né?

Suzette interrompeu a mordida da pizza no meio, pousou ela no prato e balançou a cabeça desconsolada.

– Tudo bem, Suze? – Marco estranhou.

Ela sorriu forçado e levantou um dedo, como se pedisse pra falar em sala de aula:

– Tudo, amor. Só um minutinho que eu preciso fazer uma ligação.

Suzette saiu da mesa, digitou algo no celular e começou a falar no canto da sala:

– Sim, doutor. De novo. Começou. Não, não. Foi só um sintoma pequeno. Sim, sim. O que eu faço, então? Hum, hum. Vocês chegam aqui quando? Ótimo, ótimo. E, enquanto isso, o que eu faço? OK, OK. Vou tentar, vou tentar. Venham logo, por favor. Muito obrigada, muito obrigada.

Intrigado, Marco a questionou:

– Suze, com quem você estava falando?
– Com ninguém, amor. É que eu lembrei de uma coisa e…
– O que é isso? Vai impor sigilo de cem anos aqui em casa? Olha só, não quero ninguém aqui em casa compactuando com essa postura de comunista.

Suzette arregalou os olhos e o próprio Marco percebeu que havia algo errado. Ia falar bolsonarista e da sua boca saiu “comunista”.

– Suze, você viu? Aconteceu de novo. Amor, me ajuda. Não sei o que está rolando comigo.
– Calma, amor. Senta aqui no sofá e vamos assistir algo pra você relaxar. Isso, senta. Respira fundo. Deixa eu ligar a TV. Daqui a pouco começa Pantanal…
– Ótimo, estou mesmo precisando relaxar. Pode botar aí na Globolixo, amor.

Ao ouvir aquela palavra brotar da sua boca, Marco teve certeza de que estava tendo um derrame ou algo parecido. Só isso podia explicar essa troca de palavras. O que mais podia justificar ele estar falando como um fascista?

– Suze! Me ajuda, acho que estou tendo um treco. Suze, o que está acontecendo comigo?

Suzette, muito séria, não se moveu.

-Suze, vem cá! Por que você não me ajuda?

Suzette suspirou e se encaminhou para a estante de onde tirou um celular escondido por trás da coleção de livros do Chico Buarque.

– Marco, fica calmo, você não está morrendo, nem nada. Mas se prepara pro que eu vou te mostrar. Pode ser um bruta choque pra você.

Ela sentou ao seu lado e começou a mostrar para ele um álbum de fotos onde Marco, vestido de camisa do Brasil, daquela amarelinha, sorria extasiado.

– O que é isso, Suze? De que Copa é isso? Tem anos que eu não uso essa camisa, porque….
– Exato, Marco. É exatamente o que você está pensando.

Ela continuou avançando pelas fotos e ele começou a identificar a praia de Copacabana, as faixas pedindo o Impeachment, e, surpresa total, numa delas ele mesmo carregava um cartaz pedindo intervenção militar e o fim do STF.

– O que é isso? Isso só pode ser fake news- se indignou.- Eu nunca…
– Calma, Marco. Eu também caí nessa.

Nas próximas fotos ele e Suzette apareciam abraçados com uma bandeira do Brasil fazendo arminha com a mão.

– NÃO! Isso não! Tudo menos isso. ISSO NÃO.
– Marco, a gente errou. Eram tempos complicados. A economia tava uma bosta, tinha a lava a jato, aquela série do Padilha no Netflix, e no Jornal Nacional toda hora aparecia aquele cano cuspindo dinheiro. A gente foi na onda. Eu já aceitei isso e mudei de ideia, mas você parece que não aceitou essa inconsistência política e, vez outra, tem esses surtos quando relembra que foi…
– Fui o que, Suze?
– Bolsonarista.
– Bolsonarista? Logo eu que fiz campanha pro Lula?
– Em 2002, sim. Mas em 2014, olha só…

Na próxima foto lá estava Marco abraçado com Aécio Neves.

– Para, Suze! Você está me assustando.
– Calma, amor. Fica calmo. Vez ou outra você tem esses surtos mas eles passam e você esquece de tudo e volta a ser uma pessoa normal.
– Mas por que isso acontece?
– Bom, tem algumas teorias. Dizem que pode ter a ver com a economia. Quando ela vai bem, você apoia qualquer governo que estiver rolando; quando vai mal, você segue na direção oposta. Mas ninguém tem certeza do que causa isso. Alguns dizem até que é uma doença crônica. Uma espécie de característica comum da classe média…
– Mas eu sou de esquerda, Suze. Gosto de Chico Buarque, tenho todos os discos do Caetano, li até os livros da Márcia Tiburi.
– Não leu, Marco. Assim como não leu os do Olavo, quando ficava de direita.
– Eu nunca tive livros do Olavo.
– Não?

Suzette se levantou e abriu uma gaveta no rack da TV. Lá dentro, sob um fundo falso, estava exatamente o que Marco não queria ver: livros do Olavo de Carvalho, DVDs de versões estendidas de Tropa de Elite e um bando de CDs de cantores sertanejos.

– NÃO! EU NÃO POSSO SER BOLSOMINION! NÃO, NÃO POSSO! ISSO É MENTIRA. MENTIRA!

Enquanto Marco gritava de joelhos lamentando a própria sorte, a campainha tocou e Suzette abriu a porta de entrada. Dois enfermeiros enormes entraram na casa, sem pedir licença, agarraram Marco, lhe deram uma injeção e o levaram embora numa camisa de força. Uma médica, que ficou parada na porta, deu algumas indicações para eles e se aproximou de Suzette. Vendo o celular com as fotos de Marco sobre o sofá, ela perguntou:

– Por que você mostrou as fotos para ele?
– Não tive saída. Ele começou a surtar achando que ia morrer.
– Entendo, mas, atenção, só use isso em último caso.
– OK, OK. Será que ele melhora rápido? Esses surtos estão ficando cada vez mais comuns.
– É, parece que o quadro está evoluindo negativamente, mas vamos torcer que ele demore pra ter outro episódio.
– Quando ele volta pra casa?
– Acho que antes do fim de setembro ele já estará em casa.
– Antes de 2 de outubro ele já vai estar aqui? Quer dizer que vai ele poder votar?
– Bom, votar, ele até pode, o problema é em quem. O problema é em quem.

Amanhecer

Ontem, a gente via o nascer do sol do outro lado, do lado daqueles que ainda não tinham dormido. Voltando de boates e bares, encharcados de álcool e conversas essenciais, seguíamos de carona em carros de desconhecidos em direção a casas que não fossem as nossas. Abríamos janelas e geladeiras na busca vital por ar e pela última dose; ligávamos televisores e cd players como trilha sonora para nossas últimas investidas amorosas; nos esparramávamos em futons e camas estranhas dando boas-vindas ao sono do qual necessitávamos; fumávamos cigarros e começávamos conversas tentando nos manter acordados para sempre. Não sabíamos o que queríamos, não sabíamos de nada, e estava tudo bem. E estava tudo bem.

Hoje, a gente vê o nascer do sol pelo outro lado, do lado daqueles que acabaram de acordar. Despertando assustados de sonhos estranhos dos quais não conseguimos lembrar, encharcados de suor e solidão, vamos arrastando os pés doloridos até cozinhas silenciosas em busca da cura inexistente para a ressaca da vida. Abrimos janelas e geladeiras para contemplar nossos desejos e lembrar dos nossos erros; entramos na internet em celulares e computadores tentando buscar a impressão de um amor que um dia achamos já ter sentido; nos enrolamos em cobertores e abraçamos travesseiros, tremendo, tomados pelo medo de dormir, mas com o terror de acordar; sentimos vontade de fumar e lembramos que precisamos parar, com isso e com tudo mais que já nos fez felizes; começamos monólogos em redes sociais tentando capturar a atenção de alguma alma que possa salvar a nossa. Save Our Souls, SOS, escrevemos repetidamente sem resposta em muros digitais. Esquecemos, sim, o que é querer; e nem lembramos da última vez em que quisemos algo verdadeiramente, e isso é tudo que nos resta. Sim, é pouco, é ruim, mas é tudo o que sempre merecemos. O que sempre pedimos para acontecer.

Amanhã, como será o amanhecer? Amanhã, como será amanhecer?

Esotérico

Sempre, quando a festa começava a chegar ao fim, os amigos pediam:

– Toca esotérico. Esotérico. Toca esotérico.

E o pedido nunca era para um, nem para o outro. Era um pedido pros dois.

Eles, mesmo brigados, por motivos dos quais não lembravam mais, sorriam pros amigos, com sinceridade, e um pro outro, com falsidade, e buscavam seus violões. Sentavam-se um ao lado do outro, mas afastados, e tocavam.

Não precisavam de deixas ou marcações. Sabiam a hora de começar a solfejar juntos, a hora de um cantar e de o outro calar. Sabiam até quando um devia assoviar e o outro simplesmente sorrir. Faziam primeiras e segundas vozes, intercalando os versos em perfeita harmonia. Uma harmonia que há muito não existia.

Quando a música terminava, com um acorde longo, síncrono, quase infindável, todos se levantavam e aplaudiam, homenageando uma amizade que não era mais real. E eles, como pedia o figurino, se abraçavam, e agradeciam ao público, fingindo serem os jovens velhos amigos que a memória lhes dizia: nunca fomos.

E por um breve momento, nesse fim de música, os amigos e eles mesmos acreditavam nesse pastiche de amor fraternal, irreal, surreal.

O nome da música, que parecia lhes unir, ser “esotérico” não era uma simples coincidência. Era ao mesmo tempo uma afronta e um destino. Amizade era exatamente um conhecimento hermético do qual eles tinham feito questão de esquecer.

Esperança de mudança

Saindo do Santa Bárbara, o taxi tomou um caminho diferente do que a gente esperava.

– Ei, moço- minha mãe alertou-, você tá indo pro lado errado. A gente vai pro Leme.
– Vai, não- meu pai interrompeu. – Pode seguir, moço. Ele sabe pra onde a gente tá indo.

Até o taxista sabia mais da vida da gente do que a gente.

O carro seguiu pelo seu caminho misterioso, passou na frente do estádio do Fluminense, pegou o viaduto Jardel Filho, e, depois de seguir pela Marques de Abrantes, nos deixou numa esquina, na frente de um posto de gasolina.

– Gostaram? Então, é aqui que a gente vai morar agora- meu pai tentou amenizar o choque, apontando para um prédio quadrado, de pastilhas, sem graça e sem vista pra nada.

Por fora, parecia uma prisão. Embaixo dele uma padaria, uma papelaria e um botequim; na sua frente, além do posto, uma banca de jornal. Prático e triste.

Pra quem morava de frente pro mar, cercado por restaurantes e hotéis exóticos, era uma mudança. Com certeza pra pior. Um fim de infância.

– Então, vamos conhecer o apartamento novo?- meu pai convidou, fingindo animação.

Condenados, pegamos as malas que nos acompanharam desde as férias na casa do meu avô em Campina Grande, pra onde fomos quando ainda morávamos num lugar que amávamos, e seguimos meu pai pelo prédio no qual não escolhemos, mas no qual seríamos obrigados a, morar. Pelo menos por enquanto.

Subimos 3 andares num elevador velho, lento e apertado. Equilibrando chaves e malas, meu pai, com dificuldade, abriu a porta do apartamento 302. Toda a nossa mudança estava lá, ainda encaixotada. Em breve descobriríamos a quantidade de coisas que perdemos ou foram destruídas pelo descaso de quem nos mudou. Tanto os carregadores quanto o meu pai.

O apartamento, crú, precisava de pintura e cortinas. E em todos os pontos de luz as lâmpadas balançavam ao sabor do vento, penduradas por fios pretos e sem lustres. Não era um lar. Era uma ocupação.

Minha mãe me puxou num canto, conspirando:

– Não vamos ficar aqui seis meses. Pode confiar.

Confiei e ela estava certa. E errada. Não ficamos 6 meses. Ficamos 16 anos. E sempre nos sentimos como no primeiro dia: traídos.

Quando conseguimos escapar, primeiro minha mãe, sozinha, depois eu, fugido – meu pai nunca morou lá de verdade-, não olhamos pra trás, nem tivemos saudades. Até agora.

Hoje passei na frente do prédio. Ele continua quadrado, com pastilhas, sem vista e sem graça. O botequim e a padaria viraram lojas de colchões. A papelaria ainda existe, mas mudou de nome. O posto de gasolina, como quase tudo, deu lugar a uma farmácia. A banca ainda está lá, mas foi movida para o outro canto da rua. Senti saudade. Não do apartamento, mas de quem éramos, de quem não seremos mais.

Mesmo nos momentos ruins, como no dia daquela mudança, havia a esperança de uma nova mudança para um lugar melhor, para um tempo melhor. Pra onde foi toda essa esperança? Deu vontade de parar um taxi e perguntar ao taxista. Talvez, como da outra vez, ou pela primeira vez, ele saiba o lugar certo pra onde deve me levar.


Texto sobre memória e identidade escrito na Oficina de Escrita de Paula Maria.

O Bolão

Como tudo que dá errado, ou certo, essa história também começou de forma inocente. Nas quintas, uns três caras da controladoria, no caminho pra tomar um chope no bar do Gaúcho depois do expediente, começaram a fazer uma fezinha da Megasena.

A princípio ninguém sabia o que estava rolando, ou, se sabia, preferia ignorar. Era aquele tipo de coisa que passava abaixo do radar da rádio corredor. O gerente deles, um estatístico frustrado, quando ficou sabendo, inclusive, quis dar lição de moral dizendo que loteria era imposto dos pobres e que a chance de ganhar era ridícula. Não deu outra. Logo após o pito do chefe, eles ganharam uma quadra.

Tá, o dinheiro foi pouco, mas deu pra um deles botar aparelho nos dentes e pra outro fazer um transplante capilar. A tentativa de embelezamento, mesmo mal-sucedida, chamou a atenção do resto da firma que começou a se interessar pela atividade pós expediente dos sortudos.

O primeiro que quis fazer parte do rateio foi o Zé Márcio, funcionário antigo e caprichoso que cuidava da Copa. Como quem não quer nada, ele começou a assuntar:

– Quadra, né?
– É.
– Legal. Foi jogo simples?
– Simples. 6 dezenas. Na bucha.
– Sorte, hein? Sabia que jogando mais dezenas tem mais chances?
– É?
– É. De quanto é a cota?
– Cota?
– É, quanto cada um coloca em cada aposta?
– Tem isso não. A gente aposta o que tiver de trocado.
– Pois devia ter. Se incomodam se eu organizar o Bolão?
– O Bolão?
– É. O Bolão. Deixa comigo. Eu mantenho vocês informados.

Sem ninguém para impedi-lo, Zé Márcio cumpriu sua promessa. Criou um grupo de whatsapp pros apostadores; escolheu a imagem de um trevo de quatro folhas em cima de uma pilha de dinheiro como avatar para dar sorte; estabeleceu um valor mínimo de cota, e um dia e horário pra encerrar os depósitos; compartilhou o seu pix para recolher as apostas; e decidiu, sozinho, que a partir de então apostariam nos dois sorteios semanais, tanto no de quarta quanto no de sábado.

Com essa “profissionalização”, o Zé Márcio acabou afastando os sortudos originais, que só queriam ter algo que os unisse pra conversar a respeito no chope de quinta, mas conseguiu até trazer mais alguns novos apostadores, na maioria os habitués da Copa que matavam as oito horas regulamentares de serviço se enchendo de café. Mesmo com o aumento de participantes, o bolo, ainda pequeno, não tinha virado o Bolão que ele esperava criar.

Tudo mudou com a entrada da Cláudia.

Cláudia era a nova coordenadora de comunicação digital. Nova de empresa e idade, costumava usar uns camisões xadrez compridos com umas bermudas cargo que lhe davam um ar ainda mais jovial. Além disso, adorava e sabia contar histórias. Quando ficou sabendo do Bolão já se adiantou pra apostar e, óbvio, tinha até um causo pra justificar a sua pressa.

– Cês lembram daquele restaurante onde todo mundo ganhou na Mega, menos um cara?
– Lembramos.
– Pois, é, esse cara foi ex-sogro da minha prima de consideração. Quando ele ficou sabendo que a galera tinha levado a bolada e ele não tinha sido incluído, até infartou.
– Sério? E morreu?
– Não, pior: melhorou e teve que voltar a trabalhar todo dia num lugar que o lembrava que ele podia nunca mais ter que trabalhar.

O povo chegou até a rebolar sentindo o frio percorrer as suas espinhas.

A história de terror de Cláudia pelo jeito deu resultado e logo o Bolão lotou. Era só a Mega acumular ou prometer um prêmio acima de 10 milhões que o povo todo corria pra participar. Ninguém queria ficar sozinho no trabalho enquanto o resto dos colegas estariam curtindo aposentadorias precoces na praia. Ninguém queria ter o funesto destino do ex-sogro da prima de Cláudia.

Na verdade, o que realmente motivava a maioria não era a vontade de ficar rica, mas o medo de ser abandonada eternamente num trabalho do qual precisavam, mas que preferiam não fazer. Essa sensação era tão explícita que no grupo do Whats a discussão pré sorteio não era sobre a compra de propriedades, carros ou viagens. Eles só conversavam sobre não ter que precisar ir pro serviço depois de ganharem a bolada.

Há um ano, não sei se vocês lembram, rolou aquela estiagem de prêmios da Mega quando ela ficou acumulando várias vezes até ao ponto de chegar no valor recorde do prêmio. Lembram? Pois, é. Nesse período, eles começaram apostando timidamente, porém, a cada novo sorteio sem ganhador, a excitação aumentava. Pra piorar, no terceiro ou quarto sorteio da série, eles levaram uma boa quadra que deu pra todo mundo recuperar o que já tinha apostado e ainda sobrou um troco pra custear novas apostas.

Quando chegou no décimo sorteio acumulado, o Zé Márcio sentindo que todos estavam começando a ficar nervosos demais convocou uma reunião para traçarem uma estratégia para escolher os jogos que com certeza seriam sorteados. O gerente da Controladoria achou uma besteira, mas, como parte do Bolão, acabou participando pra poder prestar a sua consultoria estatística.

No encontro que quase envolveu toda a empresa, discutiram se deviam repetir os números, excluir os últimos que já tinham saído, deixar eles serem escolhidos na surpresinha, ou pedir pra que os filhos dos funcionários marcassem os números pra dar mais sorte. Teve até um cara que ofereceu uma galinha do sítio da avó pra bicar uma tábua com os números da Mega e escolher pelo grupo. Quando questionado como isso iria ajudar, ele explicou:

– De todas as galinhas da minha avó, essa sempre escapou da panela. Sorte ela tem. Sorte ela tem.

A discussão não foi pra lugar nenhum e começou a gerar rusgas entre os funcionários que já estavam ansiosos esperando que os seus sonhos de nunca mais trabalhar se concretizassem logo. Quando o vozerio se tornou incompreensível e a confusão não conseguia mais ser desatada, Cláudia bateu na mesa e pediu a palavra:

– Aí, gente, e os sortudos originais? Eles estão apostando?

Zé Márcio foi até conferir a sua planilha, mas tinha certeza que não.

– O problema talvez esteja aí. Cadê a galera que começou o movimento? Tá faltando eles pra juntar as nossas sortes e fechar esse prêmio- Cláudia decretou.

Criaram um petit comitê pra convencer os sortudos originais a apostar com o restante da empresa. Dois não queriam alegando que o que importava era só o chope de quinta, e o terceiro, como tinha virado evangélico, não queria mais saber de bebida, nem de jogo. Apesar das negativas iniciais, Zé Márcio estava determinado e disse que não arredaria pé da controladoria até convencê-los a participar desse Bolão.

– Esse vai ser o último, eu prometo. Vamos ganhar dessa vez e nunca mais iremos precisar trabalhar ou apostar em loteria.

A verve, ou quem sabe, a aporrinhação funcionou e todos apostaram. Inclusive o convertido que pediu 10% do prêmio do Zé Márcio pra uma obra de caridade da qual ninguém tinha ouvido falar.

Bom, boletos finais gerados, apostas compartilhadas, a sorte estava lançada. Até os números da galinha entraram num dos cartões. Afinal, dessa vez valia tudo. Era vai ou racha. Ou eles venciam como grupo, ou morriam como empresa.

Deu o dia derradeiro e todos, de suas casas estavam acompanhando o sorteio, esperando que seus sonhos se tornassem realidade. Zé Márcio, Cláudia, os sortudos do chope, o sortudo convertido, e até o cara da galinha que, pra dar mais sorte, foi pro sítio da avó, assistir ao sorteio junto com a galinha. Todos vidrados na TV, acompanhando número a número a virada do destino.

O fim da história vocês lembram. Deu em todos os jornais. Não sei se foi sorte, ou se foi azar, ou, quem sabe, um misto dos dois. Mas, enfim, deu no que deu, e todos tiveram o que mereceram. Como normalmente acabam todas as histórias onde a gente confia na aleatoriedade do destino. E, cá entre nós, tem outra coisa na qual podemos confiar?