Ensaios

Como lidar com os adeptos da carteirada

Quando eu era pequeno, todo mundo se referia ao meu pai como Coronel. Só fui saber que ele não era mesmo do exército aos 10 anos. Um choque. Afinal ele tinha lutado na Segunda Guerra, estudou no Colégio Militar e todo ano recebia uma romaria de gente pedindo para tirar os filhos do serviço militar. Não era coronel, mas se fazia como tal, mesmo sem dizer.

Lembro, inclusive, que insistiu comigo pra fazer uma tal carteirinha de filho de ex-combatente que, na sua fantasia, me daria acesso gratuito ao Maracanã, o que nunca me interessou, e me livraria de problemas não especificados, algo no que nunca me meti e, assim, para os quais nunca testei a solução mágica.

O fato é que, como uma boa parcela da população, ele se achava no direito de ter mais direitos que o restante da população. Era, sim, um adepto da famosa carteirada. Como não tinha um cargo ou amigos poderosos que o bancassem, ele o fazia através da malandragem e do soft power. Nunca dizia “você sabe com quem está falando”, mas era extremamente  hábil na arte de “name dropping” e adorava contar histórias, na maioria, falsas, sobre conhecidos em altos cargos. Assim nunca o vi pagar cinema, ônibus ou metrô, vivia ganhando coisas de graça e alguns, que realmente acreditavam nos poderes que não tinha, lhe usavam como mentor para assuntos que iam desde candidatura política até criação dos filhos; o que só aumentava o seu poder de influência. Era um abuso.

Agora, toda semana vemos um caso de gente tentando fazer o mesmo, sem graça ou finesse. A minha pergunta é: o que fazer?

O linchamento público não é boa opção pois, como visto no caso do Engenheiro Civil melhor que você e do Desembargador abusivo, eles não sentem culpa. Pra piorar, isso só os aproxima dos setores mais radicais da carteirada e podem torná-los, escreve aí, futuros candidatos a cargos legislativos onde terão mais oportunidades, mas não o direito, de fazer isso.

A reeducação desses sujeitos é uma impossibilidade. Ninguém quer aprender a ter menos poder. E, outra, ao sair de um treinamento ou mesmo lavagem cerebral, voltariam para uma sociedade onde tudo o que lhes foi ensinado como ruim continua a ser ostensivamente usado e funciona para seus nefastos fins egóicos.

Logo, a única saída é mexer no sistema, na cultura, e fazer com que esse expediente não funcione mais e seja uma vergonha tentar utilizá-lo. Quanto mais esse poder inexistente for confrontado e se tornar inútil, menos eles se sentirão compelidos a usá-lo. Coisa difícil e demorada, eu sei, mas é a única maneira. Se o sistema, que foi criado para favorecer a carteirada, não mudar,  não dá pra esperar que ele rode altruisticamente graças à consciência e à cidadania que a população, veja só as praias lotadas, não têm.

Foi mais ou menos assim que o meu pai parou de se meter com a história de tirar os filhos dos outros do serviço militar.

Como disse, quase como um Don Corleone, todo ano, meu pai recebia a população do Flamengo com pedidos para tirar seus filhos do serviço militar. Ele reforçava como era difícil e prometia fazer o possível. Todos saíam muito agradecidos e ficavam ainda mais agradecidos quando os filhos não serviam. Na verdade não era difícil: tinha excesso de gente querendo servir e se você se alistasse no exército, pertinho do fim do prazo, e disesse que não queria servir seria liberado. Até o dia que deu chabú.

No início da Nova República, um cara que estudava no meu colégio, umas duas séries pra frente, cabeludo, meio hippongo, boa praça, estava pra se alistar e a mãe preocupada foi procurar o meu pai. Ele fez todo o teatro, recebeu os agradecimentos da mãe e se esqueceu da história. Não sei o que rolou, se com o fim do governo militar menos gente quis se alistar, mas o menino serviu. E como estava entrando na faculdade ainda botaram ele no CPOR.

Vez ou outra eu o encontrava na rua, cabelo recado, de uniforme, e recebia os olhares de ódio que eram pro meu pai. Uma vez comentei com meu pai sobre o garoto e isso o chocou. A boa providência, pronunciou, o tinha abandonado nesse aspecto. Na sua cabeça, não tinha culpa por nunca fazer nada, era só uma questão de sorte ou azar.

Assim, ao invés de assumir seu erro, toda vez que ainda vinham lhe pedir o milagre que não fazia, ele passou a recusar a missão, falando que seus amigos tinham sido reformados, o sistema político era outro e sua influência tinha diminuído. O povo saía triste, mas ele ainda prometia fazer algo, mas sem garantir resultados, perseverando sua aparência de poder.

Enfim, o problema da carteirada não é só de quem dá mas de quem a recebe e de quem se beneficia dela indiretamente. Se mesmo sem garantias reais do poder alheio, continuamos acatando ou a pedindo precisamos questionar por que somos tão servis, ou, pior, como desejamos promover essa cultura com a esperança de sermos nós futuramente aqueles na posição de dar a carteirada.

Quando penso nessas coisas, me dá um frio na espinha e só melhoro quando começo a cantarolar La Marseillaise. Funciona. Sério. Tudo o que precisamos é cantar mais alto e por mais tempo que os tiranos.

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