Ficção

Estudo Dirigido

Toda semana de provas, papai ia me buscar no colégio e ficava comigo até elas terminarem. Não sei exatamente qual era o acerto dele com mamãe, mas essa era a única época em que tinha certeza que iria vê-lo. Férias, aniversários, datas comemorativas; nada importava pra ele. Apenas a época das provas.

– Trouxe todos os livros?
– Trouxe.
– Tá bom.

Carregando uma pequena biblioteca, ele me levava pro seu quarto e sala no Bairro de Fátima, e começávamos a estudar. Ele podia viver num lugar melhor, mas, segundo mamãe, morria de medo de não conseguir pagar o meu colégio, e preferia economizar. Por isso também tinha um emprego pouco desafiante, mas seguro, que odiava, para ter certeza que poderia arcar com os meus estudos, e, no caso de uma eventualidade, ou seja, morrer, ter um seguro de vida que me bancasse até eu me formar. Estava tão preparado para essa eventualidade que a sua geladeira tinha os telefones de todos que precisavam ser acionados no caso de um sinistro: desde o seguro até o auxílio funeral.

Mamãe dizia que uma das razões de ter se separado dele foi justamente essa: quando eu nasci, ele abdicou dos seus sonhos e morreu pro mundo. Não sei se tinha sonhos ou se chegou a tê-los um dia, mas uma coisa ele queria: que eu fosse bem nas provas. Queria mesmo.

Quando as notas chegavam, parece que adivinhava, e me ligava:

– Como foi?
– Fui bem.
– Bem como?
– Tudo acima de 90, menos História.
– Traz as provas pra gente revisar.
– Tá bom.
– Tá bom.

No final do ano, quando eu passava, ele pedia pra ficar com todos os meus livros,.

– Vai que cai a mesma coisa no ano que vem.
– Tá bom.
– Tá bom.

Eu cresci, mas a nossa rotina não mudou. Toda época de provas eu me enfurnava na casa dele até que eu passasse bem de ano. Um dia arrumei um namorado. Eu queria apresentar ele pro papai, mas não sabia como. Um dia, depois do jantar, comentei:

– Um amigo da escola queria vir estudar comigo.
– Pra quê?
– Ele não está tão bem e eu queria ajudá-lo.

Ele ficou calado, como estivesse tomando uma decisão de vida ou de morte:

– Tá bom, mas ele estiver te atrasando, ele vai embora.
– Tá bom.

No dia combinado, meu namoradinho apareceu e papai estudou junto com a gente. Uma hora, o menino foi no banheiro, e meu pai comentou:

– Esse menino é muito burro. Vai prejudicar os seus estudos.
– Tá bom.

Eu inventei uma desculpa e mandei ele embora. Nunca mais levei ninguém pro papai conhecer.

No ano do vestibular, eu mudei pra casa dele. Estudamos todos os dias. Quando saiu o resultado, ele me ligou:

– Passou?
– Em tudo.
– Ótimo. Meu trabalho está feito.
– Pai, uma coisa.
– Acho que a faculdade vai ser bem difícil. Será que você pode me ajudar?

Ele ficou mudo no telefone, como se estivesse tomando a decisão mais difícil da sua vida:

– Tá bom. Mas me passa a bibliografia das matérias com antecedência pra eu me preparar.
– Tá bom. Obrigada.
– De nada.

Mesmo sem precisar, todo mês eu ia pra casa dele revisar a matéria e fazer o trabalhos da faculdade. Sob esse falso pretexto, papai estudou tanto pra me ajudar que se estivesse matriculado poderia ter se formado comigo. Quando terminei a graduação, liguei para convidá-lo para a formatura.

– Pra quê?
– Eu quero que você vá. Pra te agradecer.
– Não precisa.
– Mas eu quero, você pode me fazer esse favor?

Mais uma vez emudeceu ao telefone, como se estivesse tomando um decisão impossível:

– Tá bom. Mas não vou ficar muito.
– Tá bom. Obrigada.

Ele foi e, como prometido, ficou pouco. Assistiu à cerimônia e na festa tomou apenas um chope, o que espantou Mamãe:

– Olha, só. Desde que você entrou na escola ele tinha parado de beber.

Quando terminou o chope, se levantou pra ir embora. Eu fui atrás dele pra abracá-lo. Ele estranhou:

– Pra que isso?
– Nada. Só pra agradecer. Obrigada.
– Não precisa.
– Tá bom.

E o abracei novamente sabendo que nunca mais o veria.

Há duas semanas a vizinha dele me ligou: ele morreu. Como estava preparado para todo tipo de tragédia, foi enterrado sem velório ou alarde. O aluguel do apartamento ia vencer e, como meu número surpreendentemente também estava na lista de eventualidades grudada na geladeira, ela queria saber se havia algum objeto que eu queria guardar. Todo o resto seria doado ou jogado no lixo. Meio sem saber porque, eu fui lá.

A vizinha abriu a porta e me acompanhou na visita. O apartamento continuava espartano, do mesmo jeito que na época em que estudava para me tornar alguém. Apenas uma coisa curiosa: ele ainda guardava todos os meus livros e provas que usávamos na revisão. Abri alguns e tive vontade de chorar relembrando regras gramaticais, períodos históricos, e equações de segundo grau. Mas não chorei.

Botei os livros de volta no lugar e chamei a vizinha:

– Pode doar tudo.
– Não vai querer guardar algo do seu pai?
– Não precisa.
– Tá bom.
– Tá bom.

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