Sou de outra época. De uma época em que não esperávamos que as coisas fossem perfeitas; de uma época quando ainda existia o acaso. Sou de uma época onde ser improdutivo é o que fazia a vida melhor. Sim, não havia coaches, TED Talks e autoajuda era o tipo de livro que só os desesperados liam. Sou não só de outra época; sou de uma época, perdoem o pleonasmo, diametralmente oposta à atual. Sim, sou de uma época onde pedíamos desculpas por usar figuras de linguagem.
Na minha época não tinha Tinder. As pessoas precisavam sair às ruas e prestar atenção para conhecer seus interesses românticos. A gente batia papo com desconhecidos e queria saber das suas vidas. A gente conhecia gente estranha e se apaixonava em ônibus, boates e lanchonetes. E mesmo que não desse “match”, a gente tentava. Afinal todo mundo era meio que igualmente ruim e ter relacionamentos sempre era dificultoso. Se tudo ia bem demais, com certeza tinha um problema. Então era melhor que não fosse muito bom. Onde já se viu buscar felicidade no amor?
Na minha época tembém não tinha Goodreads. A gente não buscava livros que fossem se encaixar em nossos gostos e nos agradar. Os livros nos encontravam e dominavam perversamente as nossas vidas. Ler era como estabelecer relacionamentos. Era cheio de amor e emoção, mas sempre tinha um porém e sempre era um risco. Por outro lado, não tinha ninguém nos vigiando para dizer se podíamos ou devíamos ler isso ou aquilo. Eu podia ler e gostar das mais variadas coisas sem precisar contar pra ninguém nem parecer esquizofrênico. Nossa identidade não era baseada em nossas predileções ou hábitos de consumo. Ter autores preferidos era algo mais próximo de manter um relacionamento romântico do que ser acionista de uma empresa.
Minha história com Fran Lebowitz, uma das minhas paixões literárias, não veio do Tinder nem do Goodreads, começou por acaso. Num sebo esquisito, nos fundos de uma galeria de Ipanema. Lá estava ela numa pilha de livros num chão; num pocket com uma capa feia e sem vida. Na contrapa, uma foto dela em frente a palavra “Author”.
Abri o livro, intrigado; li umas duas ou três histórias do Metropolitan Life sentado no chão do sebo; ri alto, sozinho; me identifiquei com seu mau humor e inadequação; e me apaixonei. Comprei o livro, fui pra casa correndo, o li todo no mesmo dia, mas não consegui colocá-lo na minha estante. Precisava carregar ela comigo.
Fran virou uma espécie de companheira de viagem. Eu, mesmo a tendo lido diversas vezes, a carregava para cima e para baixo para escapar quando as pessoas fossem chatas, o que acontecia muito, ou para citá-la quando encontrasse alguém que merecesse conhecê-la.
Essa relação obsessiva durou meses até que senti falta de ler algo novo dela. Foi só aí que descobri que, além do Metropolitan Life, ela só tinha escrito um outro livro, o Social Studies, tão curto quanto o primeiro. Pra piorar, ela sofria de um bloqueio de escritor terrível e não lançava nada novo há anos.
Me senti traído pela sua recusa em escrever, mas me mantive fiel. Se não podia ter nada de novo, a relia religiosamente e tinha o costume de citá-la mesmo quando não era apropriado. Muitos anos e releituras se passaram, quando Scorcese em 2010 fez um documentário sobre ela e, agora, onze anos depois, ele acabou de lançar Pretend It’s a City, uma minissérie extraindo ainda mais das opiniões de Fran. Assisti aos primeiros capítulos hoje e quase senti o que experienciei no nosso primeiro encontro. Não é o mesmo que lê-la, mas é algo. Algo a que temos direito nessa época.
Entendo que seja mais fácil falar do que escrever quando seus critérios de qualidades são tão altos como os de Fran, e é um alívio saber que alguém tão interessante e raivosa ainda está por aí colocando suas opiniões pra gente pensar. Mesmo que não consiga mais botar essas palavras no papel. Como ela fazia na sua época, que ainda é anterior à minha.
Mas, olhando pra minha cópia de Metropolitan Life, sim, a do nosso primeiro encontro em Ipanema há quase 30 anos, hoje sem capa e sem contra capa, por mais que eu adore vê-la e ouví-la, confesso que sinto falta de lê-la. Como sinto falta de ler diversos autores que, pelas mais variadas razões, se tornaram mais figuras midiáticas do que escritores. Mas as coisas não são mais como eram, sabe?, como eram na minha época.
Sei que hoje tudo mudou. Os escritores viraram os produtos e a internet facilitou o nosso acesso aos autores, o que gera, muitas vezes, uma falsa sensação de proximidade. Mesmo sabendo disso, confesso: sinto falta de lê-los. Ouví-los falar pode ser um bônus, mas não é uma necessidade, nem substitui o cada vez mais raro encontro com o texto.
Hoje, ouvindo Fran reclamar do presente, da tecnologia, das pessoas, dos aviões, ônibus, celulares e jornais, relembrei o nosso encontro e reafirmei a nossa identificação, mesmo que, ironicamente, ela esteja se tornando algo tão característico da época que critica. Um destino do qual todos seremos vítimas.
Por isso, vi Pretend Its a City, com um gosto acridoce na boca, como num nostálgico reencontro romântico onde sabemos que mudamos e não nos merecemos mais. Mas isso é um problema meu. Como Fran Lebowitz, sou de uma outra época. Eu já lhes disse isso?