Ensaios

Lendo boa literatura ruim

Quando era um pré adolescente sem nada pra fazer, costumava passar boa parte das férias num sítio de um amigo meu. Entre pescar de peneira nos córregos da região, invadir os sítios alheios para tomar banho nas suas piscinas e jogar RPG pelas madrugadas, sobrava muito tempo. Como não havia internet, essa máquina que te impede de ficar entediado, mas só te distrai, era necessário inventar o que fazer. Quando as invenções se esgotavam, aí é que as coisas ficavam interessantes.

Uma dessas vezes, quando as invenções já tinham terminado, e, vencidos, ouvíamos as melôs de sucesso na Rádio Mundial, enquanto éramos jantados por muriçocas, percebi que o avô do meu amigo estava sendo na mesma cadeira de balanço há mais de uma hora com um livrinho nas mãos:

– Aí, o que teu vô tá lendo?
– Ah, sei lá- meu amigo respondeu enquanto tentava matar o tempo e um mosquito simultaneamente.- Deve ser um dos livros de faroeste dele.
– Livro de faroeste? Só achei que tivesse filme de faroeste.
– Ah, sei lá, é um troço de velho aí- ele finalmente matou o mosquito e acabou com sua distração.- Pergunta pra ele se quiser.

Segui o seu conselho e eu perguntei.

– Seu Ernani, que livro é esse aí?
– São umas historinhas de faroeste.
– É? Mas por que é um livro tão pequeno?
– São uns livros que vendem em banca. O papel é pior, mas as capas são bem legais. Além de faroeste tem também policiais, de espionagem, de um bando de coisas. Histórias pra homem. Nada desses romances aí que as velhas lêem. Olha só.

Ele abriu um armário do lado da sua cadeira e lá estavam lotes de livrinhos.

– Toma esse aqui. Você vai gostar.

De noite, depois do RPG regulamentar, fui pro meu quarto, acendi o abajour, peguei o livro e li. Do começo a fim. A história era banal, mas bem divertida. Um cowboy salvava uma moça de um assalto a uma diligência. O pai dela, que era o prefeito da cidade, oferecia ao herói uma recompensa para livrar a cidade do bando de ladrões. Ele aceitava e depois de desbaratar parte da quadrilha tinha que se livrar do chefe dela: o noivo da moça que resgatou. Após um duelo ao amanhecer na rua principal da cidade, o nosso herói ganhava a recompensa e junto com a moça ia embora em uma diligência. Mesmo na época deu pra perceber que tinha umas insinuações de sacanagem e tudo. Violência e sexo em menos de 100 páginas de papel ruim. Pra quê pulp fiction se a gente tinha uma editora como a Monterrey no Brasil?

Depois desse primeiro, confesso, peguei um certo vício. Li diversos nessa viagem e comecei a comprar esporadicamente. Lembro especialmente um da coleção FBI em que o agente e protagonista da história espancava um sujeito no meio da rua e explicava por que tamanha violência gratuita:

– Tá vendo esse distintivo aqui? Ele diz que eu posso bater em que eu quiser, na hora em que eu quiser, onde eu quiser, sem precisar dar explicações.

Paradoxal, não? Depois falam que é subliteratura.

Os anos passaram, a minha frequência de leitura dessa boa má literatura diminuiu, mas quando, em 1997 me mudei pra Tijuca, fiquei sabendo que a Monterrey era perto lá de casa e, claro, fui obrigado a fazer uma visita. Era uma casa velha e aparentemente abandonada. Apertei a campanhia. Não ouvi nada. Esperei um pouco e, depois de me convencer que a campanhia estava quebrada, bati palmas.

– Ô de casa!- falei sem saber direito como me portar.

Numa janela apareceu um velho sem camisa:

– O que você quer?
– Aqui é a editora Monterrey?
– É. O que você quer?
– Sei lá. Queria visitar.
– Visitar?

O velho fez uma cara de surpresa mas abriu a porta pra mim. Não era bem uma editora. Como ele me explicou era mais um deposito. Não produziam mais histórias novas (lá se foi a minha esperança de publicar pela Monterrey) e só reeeditavam as antigas. Mas mesmo naquele época, ele me disse que o negócio não ia bem. Frente àquela pequena desilusão, agradeci o passeio e me despedi. O velho me acompanhou até a porta, mas antes de eu ir ele tinha uma surpresa pra mim:

– Espera só um momentinho.

Ele sumiu num dos quartos da casa e voltou com uma caixa de livrinhos.

– Aí, pra você.
– Não precisa.
– Me desculpe, se você se dignou a visitar a gente deve merecer mais do que qualquer um. Nunca veio ninguém aqui.

Levei aquele pacote pra casa e devorei durante um fim de semana. Os anos passaram e só me lembrei dos livros da Monterrey duas vezes.

A primeira foi quando o avô do meu amigo do sítio morreu.

– Pô, meus pêsames, cara- tentei lhe consolar.
– Valeu!
– Posso te fazer uma pergunta?
– Claro.
– O que aconteceu com os livros de faroeste do teu avô.
– Tu tá de sacanagem, né?

Óbvio que deixei o assunto pra lá.

A segunda foi no final do ano passado. Estava numa banca de jornal quando de repente me bateu uma nostalgia dos bolsilivros da Monterrey. Perguntei por eles e a moça da banca nem sabia do que se tratava. Quando tentei explicar, ela me mostrou uns livros de romance medieval. Aquelas traduções da Arlequin Books. Nem Sabrina ou Júlia pareciam existir mais. Saí da banca triste. Num mundo onde 50 tons de cinza e auto ajuda disfarçado de romance vendem aos montes, não se faz mais boa literatura ruim. Até pra isso é preciso uma excelência que não existe mais. Só pra fazer coro, deve ser culpa da Internet.

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