Ensaios

O fim da fé

Nasci em 1974. 1 mês e 2 dias depois da renúncia de Nixon. Não, os dois eventos não estavam relacionados, mas de certa forma explicam o mundo onde cresci. Um mundo com a fé abalada pelas ações de um Ricardo III moderno que develou a cara do poder. Quase 3 anos depois, em 23 de março de 1977, o mundo dava sinais do medo que Nixon criou na mente deles. Dos 5 filmes indicados ao Oscar, o ganhador foi Rocky. Rede de Intrigas, Todos os Homens do Presidente e Taxi Driver, retratos da fratura causada nos Estados Unidos, foram preteridos em relação à uma fantasia mais fantasiosa, mas não mais imaginativa, que o Senhor dos Anéis. O mundo P.N. (pós Nixon) estava louco para acreditar em algo. Até num ogro com apenas duas expressões (de olhos abertos ou fechados) que vivia o sonho americano. Eu preferi não acreditar.

Por isso os anos 80 foram tão difíceis pra mim. Enquanto os hippies desiludidos esperavam pelo fim “limpo” de uma guerra nuclear, os adolescentes eram entupidos de açucar e soft-porn, e as crianças passavam pela lavagem cerebral da auto ajuda da Xuxa “O cara lá de cima vai me dar” Meneguel, eu, para sobreviver à esse mundo de ilusão, aprendi a duvidar.

Tudo que me era dito, especialmente no colégio, era visto com desconfiança. Tinha sido ensinado pelo Zeitgeist que podia estar sendo enganado por qualquer um.

– Somando isso encontramos essa resposta.
– É, mesmo, professora?

Tudo era escrutinado. Nada passava pelo meu crivo. Até o método de ensino se tornou uma questão pra mim. Quando descobri os direitos da criança da UNICEF, achei que o princípio IX, que protegia a criança do abuso, era ferido pela quantidade de dever de casa que a professora de matemática nos dava. E reclamei. Sem resultados, óbvio.

Não ajudava também que o meu colégio fosse católico de raiz. As missas, os padres, as rezas eram todos vistos com desconfiança. Algo naquele modelo arrumado, naquele BS (believe system,a.k.a, Bull Shit) não me caía bem.

Por exemplo, quando fomos chamados a fazer a primeira comunhão, precisávamos toda segunda feira dizer ao monge que nos dava aula se tínhamos ido à missa. Quem não tivesse um número X de missas no ano não participaria do sacramento. O monge na chamada perguntava:

– Fulaninho?
– Presente, dom sicrano.
– Foi à missa?
– Er… fui.
– Olha só, DEUS está olhando. Se você mentir…

“Olha só, Deus está olhando”. E o pior eram as reticências. Que castigo terrível se encontrava por trás delas? E eu odiava ir à missa, mas como toda a turma ia fazer e, estranhamente, não quis fazer daquilo um caso, entrei no jogo. Tentei ir uma, duas vezes, até que percebi que pra mim não ia dar e precisei ser criativo.

Deus podia estar olhando, mas o monge não. Eu podia mentir na chamada mas como o monge ia saber? Só se me arguísse.Como eu podia me preparar para isso? Sabendo o que rolou na missa. Assim, todo sábado às 15h eu passava na Igreja da Santíssima Trindade e pegava o papelzinho que os fiéis usavam para acompanhar a missa. Estudava aquilo e estava pronto para qualquer pergunta. Na segunda, o monge perguntava:

– Lisandro?
– Presente.
– Foi à missa?
– Fui.

Nunca fui questionado. Nas minhas fantasias eu precisava explicar o sermão, a homilía e liturgia. Percebi até que para dar mais credibilidade algumas vezes eu precisva dizer a verdade:

– Foi à missa, Lisandro?
– Infelizmente esse fim de semana não deu, dom sicrano.
– Tudo bem, mas não deixe de ir na semana que vem.
– OK!

Fiz a primeira comunhão, na qual nem precisei cantar, pois como a minha voz estava mudando podia atrapalhar a tonalidade; e, pasmem, no final do ano recebi o prêmio de melhor aluno de religião.

– Não só pelas notas, mas pela sua disciplina de ir à missa- dom sicrano declarou.

Naquele dia, eu me tornei meu próprio Nixon. Percebi que tinha abusado do poder e do sistema. Podia ter ganho os louros da glória como Nixon, mas enganei e trapaceei como tanto temia que fizessem comigo. Aí estava o castigo que se seguia às reticência do monge: a consciência.

Lembro de ter chegado em casa triste e colocar um vídeo para assistir no VHS. Era o Rocky IV. Menos de 10 anos depois, na sua 4a. aventura, Rocky lutava no meio da União Soviética pelo american way of life. Não conseguia acreditar em nada daquilo. Assim como não conseguia mais estar do lado dos cínicos que acreditavam que é possível se aproveitar do mundo pois nada é sagrado. Fiquei no Limbo. Não tinha perdido a fé, ela me tinha sido arrancada.

Hoje, lamento por isso. Sei que seria mais fácil pra mim acreditar em dinheiro, poder,religião, política, futebol, televisão. Mas não consigo. Por isso na falta de fé, escrevo e me questiono: será que era isso mesmo que eu queria dizer? Eu não sei e isso me move.

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