Ensaios

Mestres e Deuses

Recentemente reli o livro do Jaron Lanier sobre os porquês de se afastar de redes sociais e tive uma pequena epifania. Nosso problema não são as redes sociais, mas as estratégias de controle de comportamento; o que nos preocupa realmente é que pessoas ou métodos não transparentes e efetivos consigam promover mudanças ou incitar comportamentos com os quais não concordamos conscientemente.

Evitando a discussão de que “não existe livre arbítrio”, comecei a pensar se todos os conflitos humanos não se resumem basicamente a isso: apoiar ou rejeitar ferramentas de controle comportamental. O engraçado é que muito do que temos hoje e chamamos de cultura (religiões, pátrias, instituições, escolas) não passam disso: ferramentas de controle comportamental. Porém elas estão tão entranhadas nas nossas rotinas e rituais sociais que as consideramos, erroneamente, naturais, exatamente o que elas não são.

Concordo que as estratégias e ferramentas para influenciar comportamentos considerando contextos individuais estão mais poderosas e rápidas, mas, cá entre nós, conceito de indivíduo no qual elas se calcam é coisa de menos de 300 anos e os métodos em que elas se baseiam são velhos e conhecidos. Por exemplo, a sua principal cartilha de referência, o velho manual do Skinner, Ciência do Comportamento Humano, foi publicado há mais de 70 anos, e, junto com muitas práticas derivadas da atuação do exército americano, é a base das estratégias de engajamento e cultura corporativas, que promovem subrepticiamente a doença mental. E, disso, não vejo quase ninguém reclamar. Pelo menos, não publicamente.

A justificativa de proteger a infância e as “tradições” desse artefato do apocalipse é ainda mais furada, pois ignora que a infância é uma invenção; que os adultos, submetidos há anos de condicionamento, são mil vezes mais inflexíveis e vulneráveis do que elas; e que as tradições não passam de novidades que envelheceram e estão lutando contra moinhos de vento em seus leitos de morte.

Por isso, quando vejo o pessoal falando da IA como um dos arautos do fim do mundo, lembro do que já se falou da TV, dos computadores, das minissaias, do rock’n’roll, das revistas em quadrinhos, do jazz, da prensa, e até da Escrita. Enfim, vivemos em ciclos repetitivos de buscar ameaças à existência humana, como se ela fosse importante de fato, e de glorificar os métodos de controle comportamental com os quais estamos acostumados e que promovem as ideologias que professamos (ou que nos adestraram para professar). Afinal, pensamento livre é uma característica que só atribuímos a nós mesmos, enquanto ideologia é algo que só os outros têm.

Pensando bem, ignorem tudo o que escrevi. Segundo a minha própria defesa, todo esse argumento não passa do resultado de inúmeros processos de controle aos quais fui submetido. Como os que tecem loas ou gritam alertas sobre a Inteligência Artificial sou apenas uma peça num sistema que não conseguimos vislumbrar, cumprindo o papel para o qual fui criado e adestrado, mas completamente desconheço.

Talvez a única saída para esse ciclo perverso seja abandonar o medo e o desejo; nos libertar do mundo material; transcender nossos egos. Mas isso ninguém quer fazer. Enfim, o problema me parece não ser a inteligência artificial mas que ela é bem melhor que a gente num jogo da nossa própria criação.

O que nos falta lembrar é que esse jogo pseudo civilizatório, no qual a inteligência artificial prevalecerá, só é possível vencer por WO. Ou, como diria o Garbage, o futuro é meu, como sempre, sem deuses ou mestres para obedecer. A não ser aqueles que nós mesmos cultivamos e entronizamos.

The future is mine just the same
No master or gods to obey
I’ll make all the same mistakes
Over and over again

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