Ensaios

Minhas Férias

No mês passado, Papai disse que ia me levar pra passear de noite. Mamãe disse que não. Mamãe disse que depois da peste era muito perigoso sair de noite e que tinha muito bicho na rua. Tipo tigres, leões, lobos, ratos e baratas.

Papai disse pra mamãe calar a boca, que ela era uma ateia infiel,  que ele era um cruzado pentecostal e podia fazer o que quisesse. Disse também que quando acabassem as minhas aulas online na Evangelização, ele ia me levar. E me levou.

No dia do passeio, eu botei uma roupa bem bonita. Uma camisa preta com o rosto do presidente e tudo. Quando ficou escuro, Papai parou na frente do prédio com uma picape grande. Mamãe me beijou e me pediu pra ter cuidado. Eu disse pra ela não se preocupar que eu era ungido do senhor. Ela chorou.

Eu desci e encontrei Papai na portaria. Ele me abraçou. Depois ele me deu uma caixa. Eu abri e tinha uma pistola com uma foto de Jesus no cabo. Ele disse que o próprio Presidente tinha abençoado ela pra eu matar um bicho bem grande. Pra minha sorte, nessa hora um rato gigante passou na rua, eu mirei nele e atirei. Acertei. De primeira. Papai ficou muito orgulhoso. Disse que era tipo um sinal de Deus.

Eu guardei a minha pistola na mochila, entramos na picape e fomos para onde era o zoológico. Papai disse que antes da peste os animais ficavam presos em jaulas  mas elas quebraram e os animais ficaram soltos. Mas agora todos estavam naquele parque e ali ficava mais fácil encontrar um bicho grande pra eu matar.

Papai parou a picape embaixo de uma árvore e ficamos esperando no escuro. Pra eu ficar acordado ele me contou como o mundo era pior antes da peste; que os comunistas mandavam em tudo; que rezar era proibido; e que graças à cloroquina sagrada só os homens de bem sobreviveram. Agora a gente vivia tipo num Paraíso. Um lugar só pro povo temente a Deus mas cheio de bichos selvagens. A história era bem legal mas eu dormi no meio.

Acordei com um barulho muito grande. Tipo o barulho que Golias fez quando atacou Davi. Papai já estava do lado de fora do carro com uma metralhadora. Lá longe tinha um bicho cinza, redondo, com quatro perninhas curtas e tipo uma mangueira no lugar da boca. Eu perguntei que bicho era aquele e Papai disse baixinho “elevante”.

O elevante viu o carro e começou a andar na nossa direção. Papai deu uma rajada no elevante mas ele não morreu, só ficou mais nervoso e avançou pra gente com tudo. Papai entrou no carro e tentou ligar ele pra gente fugir, mas o elevante foi mais rápido e virou a picape. Eu fiquei tonto e vi que o Papai tinha se machucado. Papai disse pra eu não ficar com medo. Eu disse que era corajoso e que quando eu crescer vou ser um cruzado pentecostal tipo ele. Papai não falou nada.

Papai quebrou o vidro da frente e saiu do carro pra tentar derrubar o elevante com mais uma rajada. O elevante de novo foi mais rápido. Ele pegou o Papai com a mangueira da boca e jogou ele longe. Papai caiu em cima de uma árvore e saiu muito sangue dele. Eu fiquei com medo, mas fiz uma oração pro senhor Jesus e fui enfrentar o elevante.

Eu saí devagarinho e me escondi atrás do carro. Depois de matar o Papai, o elevante ficou tipo confuso e parou na minha frente sem fazer nada. Eu tirei a minha pistola da mochila e mirei bem na cabeça dele. O elevante me viu e tentou correr mas eu atirei antes. O elevante caiu. De primeira.

Por causa do tiroteiro, a milícia evangelizadora chegou logo e me levou pra casa da Mamãe.  Todo mundo disse que eu fui muito corajoso e que tinha que ter orgulho do meu pai, que agora ele estava no céu. Eu nem fiquei triste. Mamãe ficou muito nervosa e gritou muito nome feio para a milícia evangelizadora. Um dos milicianos disse pra mim que minha mãe era sobe e versiva. Eu não entendi o que ele queria dizer.

O Presidente ficou sabendo da história e na semana que vem vou participar da Live dele pra contar como eu matei o elevante que é tipo uma fera de Satanás. Mamãe disse que não ia deixar eu ir, que o presidente era ruim, e que a gente vivia num inferno por causa dele. Pelo jeito não gostaram, pois mais uma vez levaram ela pra passar um tempo num campo de reconversão. Disseram que dessa vez ela volta melhor. Tô com saudades da mamãe. Vou pedir pro Presidente soltar ela. Será que ele deixa?

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