Ficção

Nosso nome é Gal

O dia mais lento e mais agitado do sebo era sábado de manhã. Livreiros, ressaqueados dos abusos da sexta-feira, se escondiam, atrás do balcão, enquanto clientes solares e animados buscavam palavras, imagens e sons para lhes fazer companhia no fim de semana. Enfim, era exatamente o tipo de gente que queríamos receber todos os dias na loja, mas não naquele dia.

Numa dessas manhãs, por volta das onze horas, um jovem casal entrou na loja. Ele: magro, de bermuda social, camisa curta de botão, cavanhaque, e óculos de armação transparente. Ela: vestido de chita, cabelo preto e ondulado, preso por um lenço, indo até a cintura, bolsa de lã, sandália franciscana, e bochechas proeminentes e rosadas. Enquanto ela abria caminho dançando pela loja, ele vinha, discreto atrás, pegando o que ela derrubava pelo trajeto.

– Olha, amor, CDs- ela cantarolou.

Ele se colocou ao seu lado e começaram a ver os CDs um por um. Ela não conseguia se controlar e comentava sobre todos, sim, verdade, todos os CDs à venda. De 3 em 3 comentários, ela pedia para colocar um pra tocar:

– Será que a gente pode ouvir um pouquinho desse do Paulinho da Viola?
– E esse da Marisa Monte? A gente pode ouvir a música 3?
– Olha, Xuxa! Ah, esse eu preciso ouvir.

Depois do 3° ou 4° CD, me coloquei ao lado do som para atender aos seus intermináveis desígnios. Por volta do meio dia e depois de passarmos por 23% do cancioneiro popular brasileiro, ela pareceu achar o que queria:

– Amor, você não vai acreditar…Gal! GAL!

Ela nem precisou falar nada, me entregou um CD, daqueles baratos de coletâneas de maiores sucessos, e eu, no automático, coloquei ele pra tocar.

– Ai, pode tocar Chuva de Prata de novo?
– Vai, amor, dança Festa do Interior comigo.
– Olha, ela gravou Vapor Barato também, tipo O Rappa!
– Baby, baby, eu sei que é aaaasssssiiiiimmmm…

Quando terminamos a terceira audição, eu não resisti e perguntei:

– Então, vai levar o CD?
– Claro,- ela não titubeou- quanto é?
– 7 reais.
– Só isso?! Amor, paga ao moço.

O menino magro colocou as mãos nos bolsos, abriu a carteira e nada. Nem um tostão furado. Antes que ele falasse alguma coisa, ela se adiantou:

– Deixa que eu pago, amor.

Ela pegou a bolsa de lã e virou seu conteúdo sobre o balcão. Entre roupas e maquiagens; livros e papéis de seda; pacotes de biscoito e garrafas d’água vazias; ela mergulhava em busca dos 7 reais que lhes dariam o direito a levar Gal para casa. Quando já estava quase desistindo, ela achou um ticket refeição de papel.

– Olha, que sorte! E é um ticket de 7 reais. Vocês aceitam ticket refeição?

Não, a gente não aceitava, mas não me senti no direito de acabar com a felicidade deles.

– Eu dou um jeito- respondi.

Guardei o ticket comigo, peguei 7 reais da minha carteira e coloquei na registradora. Tirei o CD do som, coloquei na caixa e entreguei para eles:

– Divirtam-se.

Ela, como entrou, saiu dançando, enquanto ele seguiu atrás calado, não sem antes se virar pra mim e fazer uma reverência com as mãos em prece. Juro, quase ouvi ele falando Namastê na minha mente.

Logo depois que eles se foram, terminou o meu turno e eu saí pra almoçar. Parei num botequim perto da loja e achei no cardápio um prato que custava justamente 7 reais.

– Vocês aceitam ticket?- perguntei.
– Claro- o garçom estranhou.

Pedi o prato e enquanto tomava uma cerveja, esperando ele chegar, fiquei me perguntando quanto tempo mais aguentaria aquela rotina do sebo. O trabalho era divertido, mas as horas eram longas e o salário, curto. Por mais que pensasse em sair de lá, o que diabos eu poderia fazer para ganhar a vida? Como cantava Gal, eu precisava passar por um longo caminho até poder ir pra outro lugar:

Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais

Porém, não podia negar, mesmo com a falta de grana, o atendimento aos clientes, como a esse casal, sempre me lembrava que as coisas, por mais difíceis que fossem, iam bem, muito bem, por sinal. Na minha cabeça, Gal fazia coro:

Não sei, comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul
Da América do Sul

Sim, a Gal tinha razão, tava tudo azul e vivíamos na melhor cidade da América do Sul. É, baby, é, baby, eu sei que era assim.

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