Ficção

Os golpistas e os gaviões

Uma semana depois de tomarem o forte, o cansaço começou a bater nas tropas golpistas. Suas provisões também estavam acabando, mas a esperança ainda era forte. Segundo lhes informaram, o rei deposto, motivo da sua insurreição, sabia de seu esforço e em breve mandaria reforços. O povo escolhido pelo que se dizia o Messias não seria deixado de lado.

Quando a barriga roncava, na hora das refeições que pulavam para economizar alimento, eles se juntavam e rezavam, clamando que o rei deposto ouvisse suas súplicas, destruísse seus inimigos e garantisse seus lugares no paraíso. Se as forças faltavam, a fé compensava, mas até quando?

Na segunda semana, pessoas começaram a adoecer. Sem acesso ao conhecimento médico para salvá-las, afinal a ciência, assim como a arte, era proibida pelo seu rei, eles dispuseram os doentes do lado de fora do forte sobre a grama molhada e a terra nua para morrer logo e não competirem pelo alimento dos que ainda tinham saúde. Nas longas noites de fome e escuridão, era possível ouvir os lobos uivando em comemoração pelas presas fáceis entregues por aqueles que ainda se diziam cristãos.

Os sobreviventes mantinham a fé, mas a cada minuto cada vez mais pessoas se perguntavam se estariam vivas para ver os reforços do rei deposto chegarem para lhes resgatar. Mesmo oprimidos pelo sentimento da dúvida, eles se mantinham calados e vigilantes para afastar qualquer pensamento divergente. O seu rei demanda uma lealdade ferrenha do seu povo e eles não podiam lhe faltar.

Na terceira semana, as fugas começaram. Primeiro tentaram fugir os mais hábeis, depois os que ainda tinham traços de consciência. Para reforçar as crenças do grupo e promover a supressão do pensamento livre, os que eram pegos tentando fugir eram mortos com requintes de crueldade. Na miséria e na dor, apenas a obediência cega ao seu rei pretensamente divino lhes alimentava.

Os corpos das vítimas de suas próprias consciências, ao contrário dos doentes, foram guardados para servir de alimento no caso dos reforços demorarem. O canibalismo, antigamente abominado pela moral do reino, agora era aceito sem discussão em nome da sobrevivência da tropa voltada a garantir o retorno do rei deposto a um trono que não era mais seu.

Na quarta semana, a barbárie tomou conta do forte. Talvez gulosos pela carne humana à qual facilmente se acostumaram, os golpistas transformaram em alimento, não só os fujões e os doentes, mas qualquer um que os autoproclamados líderes considerassem traidores. Quanto maior fosse a fome, mais comportamentos eram considerados traição. Não rezar dez vezes ao dia, mostrar compaixão com os doentes, sentir medo ou reclamar de dor. Tudo estava se tornando motivo para condenar o próximo à morte e à panela.

Quando restaram apenas os líderes, finalmente foi feito um acordo para evitar, ou pelo menos, adiar as mortes. Eles precisavam estar vivos para a chegada dos reforços que iriam recolocar seu rei no poder e destruir as inimigos que ameaçavam o seu falso deus. Assim, continuaram canibais, mas passaram a se mutilar e comer pedaços de suas próprias carnes para se manter vivos.

Na quinta semana, algo surgiu no horizonte. As tropas, sem mãos, braços e pernas, cansadas de esperar, se regozijaram pela sua sorte. Tinham certeza: eram as tropas de reforço do rei. Agora faltaria pouco para ele voltar ao poder. Com muito esforço, abriram os portões do forte para recebê-los. Porém, quando os soldados se aproximaram, eles perceberam que não eram reforços golpistas, eram as tropas dos gaviões do novo rei.

Em desespero, os golpistas tentaram fechar os portões e defender o forte, mas foi inútil. Rapidamente, o pouco que restou das tropas rebeldes foi dizimada pelos verdadeiros heróis do reino que depuseram o tirano que se dizia Deus. Mas os seus seguidores até o fim acreditaram, que mesmo na morte venceriam, pois o paraíso seria deles.

Estavam errados, pois o céu sempre pertenceu à tropa dos gaviões. A eles, desumanos canibais golpistas, só restou o inferno, assim como ao seu rei.

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