Ensaios Ficção

O Ganhador

No dia seguinte à grande vitória, Ernesto acordou de cabeça cheia. Não era pra menos. Tinha de tudo alí: as infinitas cervejas do dia anterior; a ansiedade e a expectativa pelo resultado; a excitação da competição; a rivalidade aberta contra seus inimigos; e, óbvio, a grande consagração, sua e daqueles por quem torcia. Levantou devagar tentando equilibrar a cabeça mas a ressaca era forte. Mesmo com muita dor foi correndo tomar banho. Precisava gritar ao mundo que era um vencedor.

Márcia acordou com o barulho do chuveiro e ainda deitada gritou para Ernesto:

– Amor, já levantou?! Não ia faltar hoje?!
– Até ia, mas preciso esfregar umas coisas na cara daquele filho da puta do trabalho!
– Você não tem jeito mesmo, Ernesto!

Seu chefe, companheiro de torcida,  com certeza entenderia a falta; e a sua ressaca bem que merecia esse descanso; mas como perder a oportunidade de se vingar daquele que tinha tirado tanto sarro dele nos últimos meses? Não dava. Era uma questão de honra.

Terminou o banho determinado, vestiu a camisa que tinha preparado para comemorar a vitória, beijou Márcia ardorosamente, como um guerreiro vitorioso, e saiu na rua que nem uma criança, com o poster do campeão enrolado no pescoço como uma capa. Era a mais pura imagem da felicidade.

Dirigiu até o trabalho buzinando. Outros buzinavam retornando a mensagem: “Ganhamos!”. A sensação de união era demais. Sentia fazer parte de algo maior que ele. Algo que importava.

Chegou cedo no escritório e começou sua vingança por tanto tempo planejada. Usou a cópia da chave que tinha pego com o zelador, companheiro da torcida organizada, para entrar na sala do seu maior desafeto: Roberto.

Nos últimos meses, ele tinha sofrido na sua mão. À cada vitória do “inimigo”, Roberto vinha com uma brincadeira, uma pegadinha, só pra humilhar Ernesto. Ele aguentou calado todo o abuso, mas, agora, a conquista mais importante era sua. Ele era O VENCEDOR. E Roberto precisava pagar por suas atitudes.

Na sala de Roberto, tudo remetia ao inimigo: a almofada sobre o sofá, a caneca, o relógio, o mouse pad. Roberto inclusive tinha um poster gigante do inimigo atrás da sua cadeira. Aquele seria o foco da pegadinha de Ernesto; a tela da sua vitória. Com muito cuidado e com a ajuda de algumas imagens que já tinha separado para esse momento, criou uma versão que mostrava todo seu ódio e saciaria finalmente a sua sede de vingança. Em pouco tempo estava pronto. Deu dois passos pra trás e apreciou sua obra prima. Aquilo bastaria. Pelo menos por enquanto.

Se escondeu atrás do sofá para surpreendê-lo. As pessoas começaram a chegar ao escritório. Ernesto sabia que Roberto iria demorar. Como ele, também estava de cabeça cheia, mas por motivos completamente opostos. 9:15, 9:30, 9:45. E nada de Roberto. Ernesto estava hiper ansioso, mas a espera iria valer a pena. Às 9:57, Roberto entrou na sala.

Lento e de cabeça baixa, ele caminhou derrotado pela sala. Jogou sua mochila no sofá e se sentou na cadeira sem perceber o que havia ocorrido com seu poster.

Ernesto ficou sem saber o que fazer. Esperava pegá-lo atônito enquanto fitava sua obra de arte. O que fazer? Esperar até que ele notasse sozinho? Isso podia demorar horas. Para piorar Roberto baixou a cabeça na mesa, o que deixou Ernesto mais tenso. Não ia aguentar. Precisava agir. E, assim, o fez.

Com toda a energia que tinha, pulou de trás do sofá sacudindo a sua capa poster e começou a gritar seu hino de guerra:

– Bi-fóooooR, Bi-fóooooR (…) Bi-fóooooR, Bi-fóooooR (…)Bi-fóooooR, Bi-fóooooR (…) Bi-fóooooR Midnight!

Roberto levantou a cabeça assustado. Na sua frente, Ernesto dançava segurando o poster do filme Before Midnight, o grande ganhador do Oscar na noite anterior. O filme pelo qual Ernesto torcia. O sangue subiu à cabeça de Roberto mas ele não conseguiu se levantar. Em seu momento de glória, Ernesto continuou provocando:

– Dá-lhe Delpy! Dá-lhe Delpy!

Só então Roberto percebeu que Ernesto apontava rindo para algo atrás dele. Roberto se virou e viu enfim o grande trabalho de Ernesto. O poster de seu filme preferido, Gravidade, o grande ganhador do Globo de Ouro, mas apenas um perdedor no Oscar, estava destruído. Por todo poster várias imagens coladas: os filhos de Jesse e Celine, uma foto de George Clooney em o Ataque dos Tomates Assassinos, e a cabeça de Sandra Bullock em Maluca Paixão substituindo o seu capacete espacial. Coroando a dessacralização, um balão de diálogo saía da boca de Bullock com os dizeres: “Cadê a Gravidade? Saiu do Globo, Caiu no Oscar!”.

Roberto finalmente perdeu a cabeça. Pegou sua caneca comemorativa do Globo de Ouro ganho por Gravidade, e, enquanto Ernesto entoava mais uma de suas musiquinhas (“É-ETHAN, É-Ô; É HAWKE, Á-HÁ”) Robert golpeou a cabeça do colega de trabalho violentamente até ele perder os sentidos.

— X —

Meia hora depois, na entrada do prédio, enquanto a polícia botava Roberto dentro de uma viatura e os paramédicos levavam Ernesto acompanhado de Márcia para a ambulância, os demais colegas de trabalho se perguntavam o porquê de tanto fanatismo por apenas um filme. O que acontecia com esses tais cinéfilos? A maioria das pessoas era normal. Acompanhava os filmes pela TV e alguns até iam regularmente ao cinema. Mas nenhum tinha o tipo de reação que eles tinham.  Havia agressividade e um tanto de irracionalidade nas paixões de todos mas nada que saísse do controle. Eram paixões, mas contidas pela razão.

Enquanto vítima e agressor deixavam o prédio, as rodinhas continuavam fofocando sobre o acontecimento. Como sempre, uns e outros, em geral aqueles esquisitos que não gostavam de filmes, advogavam a proibição do cinema, por ser uma coisa bruta e que estimulava a violência. Mas, como sempre, esses comentários foram ignorados. Afinal, ninguém dava muita trela pras opiniões dos esquisitos que gostavam de futebol.

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