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Os livros que me fizeram mal na infância

Um dos rituais que mais me agrada no início do ano é a limpeza das estantes. Confiando na velha máxima “comprar mais livros do que consigo ler é crer na imortalidade”, abarroto, todo ano, a minha pequena biblioteca com mais do que ela pode comportar. Com aquele livro que comprei pra falar mal, e nem li; com a biografia daquele sujeito com o qual fiquei obcecado por exatamente 34 horas; ou com os jogos e quadrinhos que readquiri numa tentativa infrutífera de reviver tempos que não passam mais. Acreditem, no final contas, somando aos livros que mereciam ser comprados, não é pouca coisa. Chega uma hora que todo esse suporte emocional de papel começa a causar um peso excessivo nas minhas finanças e na estrutura física da minha casa. Por isso, preventivamente, tiro das minhas estantes tudo aquilo que farei circular pelo mercado de usados. É quase como um cateterismo em que as obstruções das minhas veias de leitor vão parar na lanchonete da esquina para o prazer alheio.

O engraçado é que tem livros já lidos que sempre sobrevivem a essa limpeza. A maioria por utilidade de consulta, desejo de releitura ou simples valor afetivo. Alguns, especialmente alguns infantis, escapam há anos desse ritual por serem, além de tudo, simplesmente meus livros de formação. Ou melhor, má-formação.

Depois de começar a acompanhar o blog da Heliana sobre literatura infantil, comecei a ficar mais atento sobre o tema. O livro que damos para uma criança pode ter um grande impacto sobre quem ela se tornará no futuro. Hoje, acredito, o impacto é ainda maior. Na medida em que todos os outros tipos de mídia são usados à exaustão, e portanto se tornam menos significativos, o momento de leitura, introspectivo e tranquilo, realmente pode pesar ainda mais na formação do futuro adulto.

Mas a principal razão para ter essa impressão é realmente a minha experiência. Todo ano ao limpar a estante e manter nela os mesmos livros da minha infância, consigo ver com mais clareza em mim as características irritantes que eles me educaram a ter. É, acho que boa parte das minhas idiossincrasias e chatices que importunam tanto os outros, mas me deixam muito feliz, vieram desses livros.

A minha crise com autoridade e com a sociedade, por exemplo, vem claramente de A Grande Fuga. O livro, bem hippie, diga-se de passagem, conta a história de um grupo de Crocodilos que são levados quando filhotes para Nova York como bichos de estimação. Quando crescem, os donos os jogam pela privada. Ao invés de morrerem, como esperado, eles formam uma sociedade subterrânea que rouba o que os humanos jogam fora para realizar sua fuga de volta pra Flórida. Alguns dos momentos que sempre ficam na minha memória são a escola subterrânea montada com livros jogados no lixo, o golpe que eles dão no banco para pagar suas passagens e o “sequestro” do avião. Não sei se os editores da época sacaram isso mas A Grande Fuga é quase um manual para futuros revolucionários: educação campesina, expropriação revolucionária e sequestro de aeronaves para crianças de 4 a 7 anos.

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Uma das minhas razões para ser inconformado.

Minha cabeça dura, o que realmente incomoda muita gente, vem de Eu sou Construtor. Nesse, um menino tenta construir com blocos um castelo que suba até os céus. É óbvio que ele é frustrado pela irmãzinha, que derruba a sua construção, e por sua própria falta de habilidade, mas nunca desiste. Ele sempre cogita as maneiras usuais de lidar com o fracasso, como chutar os blocos ou reclamar com a mãe, mas sempre prefere continuar. Inclusive o livro termina apenas com a determinação de construir sem responder à questão óbvia: “E aí? Ele conseguiu?”. Na verdade, não interessa, ele continuará tentando de qualquer maneira. Afinal, ele é construtor.

construtor
A formação de um cabeça dura.

Dos nacionais, um dos mais importantes, não só pra mim, mas pra todos que tem mais de 30 anos, é o Menino Maluquinho. Esse livro, é óbvio, lhe reforça a ser autêntico. Onde mais vão te dizer que é bonito ter o olho maior que a barriga, fogo no rabo, vento nos pés, macaquinhos no sotão e tudo mais que faça seu avô lhe chamar de Subversivo? Hoje em dia, quando boa parte das crianças é planejada para o sucesso e não amada, isso não faz muito sentido, mas essas espontaneidade e liberdade transgressoras estavam bastante em voga nos psicanalizados anos 80. Ficou com saudade? O Ziraldo te liberou o livro de graça.

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Um ideal para os anos 80. Um terror para os dias de hoje.

Talvez seja tudo um exagero meu. Pode ser que esses livros tenham sido os guardados por ressoarem à minha personalidade,  e não o contrário; mas é interessante notar que os dois primeiros livros estão fora de catálogo e o terceiro virou um pastiche de si mesmo. Ou seja, eles provavelmente eram retratos de uma época mais contestadora e, hoje, não se adequam à formação de nossos futuros pequenos executivos criadores de start ups da Geração Z. Triste mundo em que vivemos.

Esteja eu certo ou não, não custa ter extremo cuidado ao comprar livros para as crianças à sua volta. Eles podem determinar as piores características dos adultos que irão cuidar de vocês na sua velhice. O negócio é tão sério que dá até vontade de escrever as minhas próprias histórias infantis. Se deu certo com o Tolkien…

Ô, pretensão… Será que tem algum livro da minha infância que explique isso?

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16 thoughts on “Os livros que me fizeram mal na infância”

  1. Eu sou construtor, A grande fuga e Menino Maluquinho, são livros que deveriam ser recomendados até hoje. Não há uma linha cartesiana que nos diga o quê dar à leitura de nossos filhos: damos o que gostamos e não o que pretendemos que o “filhote” assimile e reproduza ao crescer. Simples assim: Mãe lê, mãe leva o filho a ler.

  2. Nossa, Eu não li na minha infância mas “EU SOU CONSTRUTOR” faz parte da leitura do meu filho de 3 anos. Leio pra ele quase toda semana. Pego outro pra ler, mas ele pede – o do construtor…. é lindo demais! Detalhe: A menina do livro é a cara da irmãzinha dele que tem 2 anos. O menino maluquinho fez parte da minha infância (será que é daí minha autenticidade). é bom demais também! Já do crocodilo não conheço, vou tentar achar por ai….
    muito bom o texto. abraço.

  3. Ótimo artigo. Em minhas memórias de infância sempre tive viva minha mãe contando a história “O filho do caminhoneiro”. Recentemente encontrei esse livro num sebo e o adquiri. Lendo ele agora, vejo quantas coisas contraditórias, rsrs. Mas ele plantou semente em meu coração que ainda carrego, mais de duas décadas depois. (Vim ler aqui indicada pela aula do professor no Descomplica)

  4. Apesar da História do Menino Maluquinho ser totalmente anos 80, que para sociedade hoje parece um crime, acredito que não seja somente essa a base da formação da personalidade da criança. Existem coisas que precisam ser apresentadas mesmo para a educação… Caso contrário, em que mundo viveremos em nossa velhice? Será que alguém ao assistir Caverna do Dragão se perdeu em alguma caverna pelo caminho? Gostei muito do seu artigo Professor! Estou realmente buscado compreender tudo àquilo que fez a minha história!

  5. Infelizmente, a leitura deixou de fazer parte do mundo dos pequeninos atuais. O que tem formado os futuros adultos, são os jogos, blogueiros, youtubers e etc. Mas sempre existirá uma mãe insistente como eu, para comprar um livro para filha, na esperança de influenciar suas narrativas com acontecimentos diferentes. Será que Mauricio de Souza e Monteiro Lobato, explicam meu comportamento?

  6. Por motivos de religiosidade excessiva meus pais só me me permitiam a leitura de livros cristãos feitos para crianças.
    As histórias de Rei Davi, Salomão, entre outros personagens bíblicos marcantes podem ter moldado minha personalidade e quando as releio realmente me toca e trazem identificação embora o apego a religião não tenha persistido até a fase adulta.

    1. Ótimo artigo professor Lisandro. Boa parte do que nos tornamos tem muito a ver com as nossas leituras. No ensino fundamental II estudava em um colégio muito tradicional e as leituras eram basicamente José de Alencar, Machado de Assis, Adolfo Caminha, Bernardo Guimarães,etc. Era uma tortura ler aqueles livros que não faziam qualquer sentido para mim. Naquela época final dos anos 80 e início dos anos 90 procurava literatura de ficção algo que sempre me fascinou: Moby Dick, 20 mil léguas submarinas, Volta ao Mundo em 80 dias, dentre tantos outros. Fico feliz na escola quando os alunos me perguntam o que eles devem ler. Leiam o que faz sentido para vocês se gostam de games procurem literatura ao respeito. Estou fazendo a pós da Descomplica em coordenação pedagógica.

  7. Fiquei feliz quando me deparei com a tua indicação para o teu próprio texto na pós do Descomplica. Me fez discutir comigo mesma o sentimento que tenho por meus livros, pois cresci com livros que retratavam um amor perfeito, uma vida perfeita e sem contas para pagar. Grande engano. Hoje, na vida adulta, me deparo com a realidade e fico frustrada. Tudo culpa da Disney… hehehe

  8. Excelente artigo, de várias maneiras!
    Primeiro, leva-nos a recordar das leituras que nos “fizeram”, que nos formaram e ajudaram na nossa construção de nossos caráter e personalidade.
    Segundo, leva também a lembrar do prazer de uma boa leitura. Aquela descompromissada, que lemos por prazer, por curiosidade e com um desejo ardente de ver o clímax da história. Longe dos intermináveis relatórios, artigos, livros e bibliografias infindáveis que a vida adulta nos impõe.
    E, por derradeiro, a importância de proporcionarmos aos nossos filhos essas experiências de leitura, de autodescobrimento e descortinar do mundo pelos próprios olhos.
    Sou seu aluno no DESCOMPLICA e estou adorando a matéria!
    Parabéns!

  9. Muito bom artigo. Me pergunto: Os Meninos da Rua Paulo me fizeram montar turmas para “guerrear” com meninos de outras ruas e bairros ou aquilo era uma coisa “universal” de garotos?

  10. Sou muito curioso, sem dúvida inspirado em Glorinha, uma menina extremamente curiosa, do livro “A curiosidade premiada”. Outro Livro que marcou minha vida foi Revolução do Bichos, de Orwell. Professor, muito obrigado pela indicação de leitura desse artigo, bem escrito e provocativo. Cheguei aqui, também, através da aula na Faculdade Descomplica).

  11. Os livros que me marcaram foram o pequeno principe, o homem que calculava o outro era 1000 histórias sem fim ambos últimos da malba tahan. Lá pelos 20 foi o do paulo coelho. Um livro muito bom chamado o alquimista.

  12. Gostei muito dessa tarefa professor Lisandro. As minhas história eram contadas oralmente, lembro bem no sitio que morava com vovô, uma grande roda de amigos em torno da fogueira para ouvir leitura de Cordel, eu tinha três ano. Minha vó sabia histórias lindíssimas dos parentes ou realismo fantástico, eu e outros amigos da rua que morávamos se reunia aos pés dela para ouvir: Pássaro Misterioso, Pedro Malasarte, Onça que queria pegar minha Bisa… E muitas outras riquezas. Hoje amo livros que me levem para lugares Mágicos. Sou contadora de historias, amo criar artesanatos com reciclagem.
    Gostando muito da discipliana.

  13. Gostei muito do artigo e gostei também dos comentários dos colegas. Muitos dos livros citados também fizeram parte da minha infância e lembro de todos com carinho. Tenho esses mesmos problemas relacionados à minha estante: livros comprados e não lidos, livros já se desfazendo e não descartados …

  14. Texto muito bom. É incrível mesmo perceber como livros e demais experiências que temos acesso ainda na infância e achamos nem ligar muito possuem tanto impacto na nossa formação. Acredito que hoje em dia têm se discutido mais sobre isso. Mas, livros como os citados por você fazem muita falta para a construção dessas identidades autênticas.

  15. Não consigo comentar muita coisa agora. Sei que você alugou um tríplex na minha cabeça, professor. Obrigada!

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