Ensaios

Um necrológio urbano do Rio de Janeiro

Nasci na São Clemente, esquina com a Sorocaba, numa maternidade que não existe mais. Hoje é um daqueles prédios quase brutalistas dos anos 80, com muitas garagens e poucas pessoas.

Aprendi a andar e falar na Gustavo Sampaio, num quarto e sala com vista para a Atlântica. Nasci com o pé chato e caminhava na praia para curar. Curei. Depois de jovem e adulto(?) voltei a esse prédio para certas incursões bizarras e também pois tinha amigos que moravam lá. Me surpreendi com a imprecisão de minhas memórias. Física e Moralmente.

Na primeira infância estudei no Leblon em um colégio experimental. Voltava a pé pela praia com a minha mãe. Frequentei a praça do Lido antes de ser gradeada, a Ary Barroso, o Clube Radar e o Parque Peter Pan. Ia ao extinto cinema Ryan; ao, hoje fechado, Roxy; e ao, também fechado, Cinema Um. No seu lugar hoje tem um Hortifruti. Comecei a formar o meu paladar no Príncipe das Peixadas, que hoje é um Joaquina, e no Cervantes, em coma por conta da pandemia.

Na volta de uma visita ao meu avô em Campina Grande, descobri que tinha sido mudado pro Flamengo, para um prédio que ainda existe; e fui matriculado no colégio Bennett que virou uma universidade Univeritas. Não gostei da mudança e sempre quis sair de lá, o que só foi acontecer 17 anos depois.

Enquanto isso não acontecia, eu ia até onde minhas pernas permitiam. Andava de bicicleta nas calçadas no entorno do prédio, onde caí e tomei seis pontos no queixo; comprava gibi na banca do seu Antônio, já falecido; e ia à papelaria Líder comprar isopor e jogos de tabuleiro. A papelaria ainda existe, mas não tem esse nome, nem os mesmos donos.

Aprendi a ler e me colocaram para estudar num colégio em cima de um morro na rua Dom Gerardo, pertinho da praça Mauá. A rotina era pesada. Saía de casa às 7 da manhã e voltava às 6 da noite. Não me sobrava muito tempo pra ir a lugar algum, a não ser nos fins de semana. Aí os destinos eram o cinema São Luiz, na época uma só sala, e o cinema Largo do Machado, com duas salas, hoje usurpadas por um culto pentecostal. O programa cinéfilo sempre terminava no McDonalds ou nas sorveterias Babuska e Sem nome. Hoje não tem mais sorvete. Só uma Hering e uma Leader Magazine.

Me tornei adolescente e ganhei quilômetros de coleira. Ia à Biblioteca Nacional e à Machado de Assis; aos sebos da praça Tiradentes; às livrarias do Largo do Machado; e aos cinemas da Tijuca. Nenhum deles sobreviveu. Quer dizer, os sebos, as livrarias e os cinemas. As Bibliotecas ainda estão lá. Por enquanto.

O tempo passou e ganhei a noite. Caminhava sem destino pelo Catete e Flamengo, com breves paradas no Caneco 2, que virou um restaurante árabe, e no Machadão, transformado numa loja de vitaminas. Lá a gente ia para conversar sobre a vida, tomar chope, comer casquinha de siri e tomar caldo verde. Dá saudades.

Entrei na faculdade e me mudei espiritualmente para Copacabana. Quando não estava na sala de aula, primeiro na Gávea, depois na praia Vermelha, eu ia pra Copa pra beber nos bares da orla, da praça do Lido e no Cervantes, além de fazer amizades das quais não me orgulho. Ia também às saudosas boates, Galeria, Basement e 1904, e às diversas livrarias que não existem mais no bairro.

Para não dizer que não ia a outros lugares, frequentava o Mosca Feliz na Lauro Muller, que se mudou para a Lapa, e de nome para não ser reconhecido, e curti umas noites nas boates da Visconde Silva, onde eu não me encaixava mas era bem acolhido.

Um dia me vi sozinho em casa, todos da família tinham se mudado, e resolvi abandoná-la também. Fui para a Tijuca onde tirei um sabático de 2 anos, sem passar dos limites da Marquês de Valença e da São Francisco Xavier. Por obra e graça de entrar no mercado de trabalho, consegui voltar pra Copa onde fiquei também circunscrito a poucos quarteirões, nesse caso em torno da Djalma Ulrich, dividindo meu tempo entre o botequim Vedete e a creperia Yonza. Não sei que fim eles tiveram.

A idade adulta chegou e tornou o Rio um borrão geográfico para mim. Morei em Ipanema e em Botafogo, mas nesse período frequentei poucos lugares de nota como o Adriano na Real Grandeza, que ainda sobrevive, graças a Deus; mas, no mais, ficava dentro de casa. Esse afastamento da cidade chegou a um ponto em que a abandonei.

Fiquei 4 belos anos em BH. Não farei comentários, pois o necrológio é do Rio e não de Belo Horizonte. E os meus amigos que ainda moram lá dizem que ela merecia um necrológio à parte. Acabei voltando, mas a relação com o Rio azedou.

Voltei para Copacabana em plena preparação para as Olimpíadas. Não foi uma visão bonita. Uma cidade cheia de tapumes e com lugares tradicionais sendo transformados em armadilhas para turistas. Alguns lugares acabaram fechando pois não atendiam à visão pasteurizada que o Rio errou em seguir. Mais uma vez acabei me fechando em poucos quarteirões para criar relações mais humanas e significativas. Não queria ser cliente, mas, sim, freguês.

Por obra e graça da crise multifatorial que assola o país, me mudei pra praça São Salvador. Confesso que inicialmente achei estranho, mas me adaptei bem. Acabei fazendo amigos no Salvatore Café; comecei um fanzine local de humor político; mas assisti ao fechamento de negócios clássicos, como a papelaria Macris, que deu lugar a, Deus nos perdoe, uma hamburgueria gourmet.

Agora, esperando o momento certo para sair novamente às ruas, me questiono o que encontrarei nesta terra devastada. Tive a sorte de crescer numa cidade, mesmo em crise permanente, com história. A pandemia e as péssimas escolhas de nossos eleitores destruíram tudo que havia, sem deixar nada no lugar. Talvez haja uma maneira de olhar positivamente para isso; talvez seja o momento de construir a nova história da cidade. Afinal viver no espaço físico é um constante participar de velórios e nascimentos de uma arquitetura urbana que nos fala sobre quem somos e quem queremos ser. Espero que dessa vez não nos esqueçamos do que veio antes de nós, nem repitamos, mais uma vez, os erros com os quais não cansamos de desaprender.

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