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Volta às aulas

Deve fazer uns 10 anos (ou mais) que não sento em uma sala de aula como aluno. Não, minto. Nos últimos 10 anos entrei e saí de salas de aula com displicência, começando a estudar pra, após devorar as bibliografias recomendadas, fugir como um ladrão no meio da noite. Coisa aparentemente sem explicação, mas justificada pelo asco que sinto pelo ensino tradicional. Adoro aprender, odeio que me ensinem algo num ambiente hierarquizado onde todos são considerados ignorantes.

Apesar disso, essa semana, dando mais um murro em ponta de faca, fui a uma universidade participar de um processo seletivo prum curso. Dessa vez uma pós graduação. Dessa vez um curso do qual não posso sair. A empresa vai pagá-lo.

Cheguei adiantado (pra variar) e dei um tempo admirando a estrutura do modernoso prédio. Muitos espaços inúteis e vazios. Um belo exemplo da arquitetura brasileira pós Niemeyer. Uma bela metáfora do nosso meio universitário.

Na larga entrada principal se lia o nome da instituição: Centro de Ciências da Informação. Um nome chique pra biblioteconomia. Subi por umas rampas vazias que pareciam desenhadas pelo Escher e me encaminhei à sala marcada para a minha reunião. Duas funcionárias sentadas em frente aos seus computadores matavam o tempo.

– Bom dia. Vim pra uma entrevista de um curso…
– Gestão Estratégica da Informação?

(Outro nome imponente)

– Isso.
– Sala 216. A professora fulana tá atendendo os candidatos.

Atravessei o corredor até a sala e olhei pela janelinha da porta. Um rapaz, bem mais novo que eu, era entrevistado por uma senhora de uns 50 anos. Os dois com ares despojados. Tranquilos. Dentro da minha surrada fantasia de trabalho – calça e sapato social, e camisa de botão – nem arrumado, nem cool, já velho pra começar minha primeira pós, me senti como um estranho no ninho.

A sensação não me era estranha. Quando entrei na faculdade, hoje percebo, até fazia força pra não me encaixar. Só usava o mesmo figurino – tinha 10 camisas brancas e 3 calças jeans iguais; ao invés dos imponentes fichários das caprichosas meninas da psicologia, usava um caderno de anotações feito pra apontar jogo do bicho que cabia no meu bolso de trás; e, pra piorar, desde o primeiro semestre, tinha a estranha mania de afrontar os professores e fugir da sala de aula assim que o sinal batia. É claro que o tempo deu cabo disso, mas, pra quem leva 10 anos pra se formar, o tempo tudo cura. Arrumei a minha turma- depois de mudar de faculdade, fique bem claro- mas assim que eles se formaram, perdemos contato. Nunca fiz muita parte. De nada.

Sentei num banco improvisado perto da sala e tirei um livro pra matar o tempo. Uma coletânea de artigos de Richard Feynman. Seria um livro certo para aquele ambiente? Subitamente me imaginei sendo expulso do departamento:

– Onde já se viu?! Um bacharel em psicologia que lê textos de física quer se tornar especialista em GESTÃO ESTRATÉGICA DA INFORMAÇÃO! Fora daqui! E só volte depois de ter lido toda a obra do Chomsky!

Escondi o livro justamente na hora em que o rapaz saía da sala. Por sorte ele não o viu. A porta da sala ficou entreaberta e, tentando terminar logo com aquilo tudo, forcei a minha entrada.

– Bom dia. Eu sei que estou adiantado, mas…
– Qual o seu nome?
– Lisandro.
– Lisandro, Lisandro. Aqui. Tá marcado pra daqui a 20 minutos.
– Eu sei, mas…
– Olha, se a pessoa marcada agora não aparecer em 5 minutos, te chamo. Tá bom?
– Tá bom.

Voltei pro meu lugar e esperei, sem ler nada, a minha vez. O prédio estava tão vazio que só conseguia imaginar a pessoa marcada antes de mim aparecendo se fosse no meio de uma nuvem de fumaça ninja. Não rolou.

– Lisandro, né? Pode entrar.

Sentei numa cadeira de universitário dos anos 70, com aquela prancheta embutida do lado direito, e coloquei a minha mochila no chão. Em silêncio esperei algum comando.

– Bom, eu só recebi os relatórios do pessoal da inscrição hoje e não consegui ler nada. Provavelmente vou te perguntar algumas coisas que já estão aqui, então, não fique chateado. Podemos começar?
– Podemos.

Ela perguntou e eu respondi. Falei da minha formação, do meu trabalho, do que esperava do curso, de tudo e mais um pouco. Se ela tivesse me perguntado algo realmente pessoal, é provável que eu tivesse respondido também. Não me sentia entrevistado, me sentia interrogado.

– Então, acho que é isso. E você? Tem alguma pergunta sobre o curso?
– Eu?
– É. Não tem nada que você queira saber sobre o curso?

Eu tinha. Muitas coisas. Vou sobreviver ao curso? Vocês tem algum professor maligno que queira me torturar? Se eu surtar no meio do curso, o que acontecerá? Se eu descobrir no meio do caminho que não tem nada pra aprender aqui, vocês me dão o diploma e me deixam ir embora? Eu tinha milhões de questões, mas só me limitei a uma.

– Como é o grupo?
– Grupo? Como assim?
– Os outros alunos? Como eles são? O que eles querem?

A professora fulana coçou a cabeça sem entender a pergunta mas se esforçando para formular uma resposta.

– Olha, varia. Tem anos que tem muita gente de computação. Em outros tem gente de história, administração e tal. Não sei como posso te responder. Bom, é assim, todo o tipo de gente. Sabe? Gente.

Me despedi e saí da entrevista desanimado. Gente. Gente não é bem a minha gente. Mais uma vez estava me colocando na desconfortável posição de não pertencer a algo. Desci as rampas devagar e deixei a faculdade sem olhar pra trás. Me aceitassem ou não, não me importava. Não ser aceito ou ser aceito só reforçariam a minha inadequação. Eu sei que já deveria estar acostumado a não me encaixar, mas, infelizmente, também não me encaixo no papel de rebelde solitário… uma pena, imagino que o clubinho deles deve ser muito legal.

Em Tempo

Acabei de saber: fui aceito. Seja o que Deus quiser

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