Arquivo do Autor: Lisandro Gaertner

Sobre Lisandro Gaertner

Escritor, roteirista, game designer e especialista em aprendizagem. Mais informações na BIO.

A menina no espelho

Toda noite, um pouco antes da hora de dormir, ela se colocava na frente do espelho, pendurado atrás da porta do seu quarto, para tentar mais uma vez se decifrar. Olhava pro seu rosto como se olhasse para uma desconhecida, perguntando-se se ela era atraente ou não. Sim, sim, respondia a si mesma, com um sorriso de canto de boca, quase querendo não acreditar no que dizia.

Fingindo ainda não estar convencida, se inspecionava da cabeça aos pés, em busca de uma verdade que sabia nunca poder encontrar. Começava pelos cabelos, pretos e curtos na altura dos ombros, que lhe davam um ar jovem apesar de não tanto quanto gostaria, nem tanto quanto ela poderia aparentar. Seus olhos, escuros, eram firmes e seguros, guardando a sua inexperiência e inocência para poucos que um dia viriam, ela esperava, a merecê-la. Do torso coberto por sua longa camiseta de dormir, que escondia as formas que, sabia, um dia, provocariam paixão e saudade, ela corria seus olhos para suas coxas, tenras e bronzeadas, que respondiam com eletricidade estática ao delicado deslizar dos seus dedos. Os joelhos, feios, sempre eles, pareciam duas velhas rabugentas, rememorando com amargura as coxas que um dia suportaram. E, enfim, os pés, artesanalmente pequenos, eram ao mesmo tempo adequados ao seu tamanho e diminutos para todas as tristezas que carregavam.

Enfim satisfeita com a promessa da sua própria beleza, ela ouvia a rua, com o som de risos e buzinas, lhe avisar do fim da sua inspeção diária e de que havia vida além do seu próprio espelho. Disso ela sabia muito bem e ansiava pelo momento em que estaria pronta para abraçar essa liberdade, mas, no momento, tudo o que lhe restava, ou bastava, era o espelho; por enquanto, até quando?, era só ela e o espelho, ou, quem sabe, só o espelho.

O Hercúleo trabalho de James Gunn

Há um antigo ditado budista que ainda causa muita controvérsia e discussão: “Se encontrares Buda na estrada, mate-o”.

Há muitas interpretações para esse koan: se você encontrar alguém que se diz Buda ou tenta parecer Buda, tenha certeza, ele não é o Buda e, por isso, deve morrer; ou, caso, por um milagre, seja realmente o Buda, você deve matá-lo, pois o que interessa não é a sua existência física, mas a sua existência enquanto espírito ou ideia; ou, numa visão moderna e jocosa, se você encontrar o Buda por aí, provavelmente ele deve ser um zumbi e, portanto, para evitar que a infecção dos mortos vivos se espalhe, sim, é melhor matá-lo.

Ontem, assisti ao James Gunn encontrar o Super-Homem na estrada e matá-lo belamente.

Não é de hoje e nem surpresa discutir o gênero de super-heróis como uma espécie de mitologia moderna. Do trabalho de Joseph Campbell com George Lucas na criação de Star Wars ao livro e documentário de Grant Morrison sobre os super-heróis como os deuses modernos, essas ideias já se tornaram senso comum. Porém, estranhamente, toda vez que se lança uma obra baseada nos super-heróis dos quadrinhos há uma grita. Os fundamentalistas decenautas ou os fanáticos marvetes fazem longas discussões sobre os méritos dessas obras derivativas, tratando desde a qualidade narrativa e técnica, até uma suposta fidedignidade aos conceitos originais dos seus santos padroeiros, quer dizer, seus super-heróis preferidos.

Enquanto assistia James Gunn fazer gato e sapato, com muito amor e carinho, do último filho de Krypton, fiquei pensando por que todo esse bafafá não se dá quando as sucessivas reinterpretações dos personagens ocorrem na sua mídia de origem, nos quadrinhos.

Por acaso, estou lendo A Obra de Arte na era de sua Reprodutibilidade Técnica do Walter Benjamin, onde, provocado especialmente pela fotografia e pelo cinema, ele discute a dessacralização da arte. Ele argumenta que no momento que a obra de arte passa a ser facilmente reprodutível ela se torna ao mesmo tempo algo do plano material, perdendo a sua aura divina, e se coloca, enquanto produto, objeto da ideologia capitalista, disponível e ansiosa pela crítica do público, o que seria inimaginável em tempos anteriores.

Antigamente, o encontro com a arte, assim como o encontro com o divino, era completamente particular e fenomenológico, como uma experiência religiosa, não passível de análise racional, crítica, ou sequer compartilhamento. A arte, enquanto experiência, existia como num religare religioso, para unir o humano ao transcendente que fora trazido à terra por autoras e autores, que só serviam como receptáculos desse poder do além.

Esse foi o tempo dos oradores e contadores de histórias, da arquitetura ligada aos templos, e do teatro como parte dos rituais religiosos. A arte, enquanto manifestação mezzo humana, mezzo divina, era aberta ao público como uma oportunidade de acessar uma verdade, ainda misteriosa, mas tornada, se não compreensível, apreensível pelos sentidos, pela nossa cognição e pelas nossas emoções.

Esses momentos catárticos de encontro com a arte provocavam até sintomas físicos, como os descritos na Síndrome de Stendhal, fazendo o público, ou quem sabe, o povo devoto, sofrer de taquicardia, desmaios, confusão mental e até alucinações só por serem confrontados por toda essa beleza excessiva.

Quando a arte se tornou reprodutível, ela perdeu essa aura e passou a ser algo a ser tratado apenas no plano do racional. Criou-se a avaliação “objetiva” da arte e, oh, heresia!, o questionamento sobre o seu custo-benefício, o qual concentra boa parte da atenção das mídias especializadas. Os autores, artistas, e atores, retirados dessa posição intermediária de arautos dos deuses, se tornaram, eles mesmos, as pequenas divindades às quais se prestavam respeito e admiração e que provocavam em seus fãs, ou fiéis, os sintomas da síndrome de Stendhal, sem a necessidade de haver qualquer contato com ou menção sequer a uma obra de arte.

Porém, mesmo com toda a atividade artística dominada pelo modelo de reprodutibilidade capitalista, há alguns bolsões de liberdade primitiva. Uma delas é o formato das histórias em quadrinhos.

Justamente por ainda não serem ainda tão incensadas como arte, as histórias em quadrinhos ainda têm mais espaço para ousar em seus formatos, (des)continuidades, e soluções narrativas. Seus autores e artistas, também pouco conhecidos, somem frente às suas criações e acaba que a revista em quadrinhos, como um poeta cantando seu poema épico, pode testar diversas iterações conflitantes em busca daquele match perfeito com o público atual, seu contexto específico, e, inclusive, espaço onde se encontrará com a obra. E é nesse encontro, repleto de canaletas entre seus quadros, que a história em quadrinhos permite que os seus leitores se insiram na narrativa gerando experiências únicas e particulares.

O cinema, por outro lado, totalmente inserido na máquina de produção capitalista, tem menos liberdade. E, quanto mais caro e mais ambicioso em seu alcance, menos liberdade tem. Os roteiristas, produtores e diretores precisam, então, dar um salto do momento sagrado e ambíguo da fonte dos quadrinhos, onde tudo é válido, e a história ou revista de um mês não precisa ter nenhum compromisso com o que ocorreu na anterior, para um modelo mais consolidado, compreensível, e que transmite a uma enorme massa a mesma mensagem. Nesse encontro não há quase espaço para o público que precisa ser totalmente absorvido pela experiência proposta na tela.

Enquanto a audiência dos poetas gregos teve acesso a um milhão e um trabalhos de Hércules, para a concisão e entendimento da nossa cultura de massa, todos esses trabalhos não podiam passar do compreensível e reprodutível número de doze.

Ontem, James Gunn, com muita coragem e sensibilidade, quebrou esse paradigma e nos deu espaço para sonhar.

Abdicando da necessidade de se tornar compreensível para um público de massa, ele construiu a sua revista em quadrinhos no cinema. Em vez de ameaçar todo o universo, aumentando cada vez mais as apostas numa mesa imaginária de desastres cósmicos, James Gunn pinçou, ao seu bel prazer, de toda a mitologia disponível, o que de mais humano lhe falava ao coração e apresentou o quadrinho que queria ler com o personagem que o Super-Homem é para ele. E, assim, com essa liberdade e desprendimento dos objetivos financeiros e de continuidade, sim, o filme não precisa fazer parte de franquia nenhuma para ser incrível, ele nos fez lembrar do que o Super-Homem significa para cada um de nós, e provocou, pelo menos em mim, um ataque de Síndrome de Stendhal, que há muito não sentia, me fazendo palpitar, perder o ar, e num determinado momento de pura ligação com humano e o divino, representado pela dualidade desse Moisés moderno, chorar.

James Gunn conseguiu o que muitos não conseguiram pois fez a parte mais difícil do trabalho: ele se deixou ser, e libertou o Super-Homem das estradas em que os estúdios insistem em aprisioná-lo. Pois o Super-Homem não é uma propriedade intelectual que vive em papéis, celuloides, ou servidores, mas uma ideia, uma sensação, e uma verdade que pertence aos nossos corações.

Ontem, James Gunn abriu o Super-Homem do seu coração para nós e nos permitiu libertar o Super-Homem que existe nos nossos. Obrigado, Gunn, por ter matado a divindade que vinha pela estrada e fazê-la renascer mais uma vez humana e divina como sempre acontece ao abrirmos uma revista em quadrinhos.

[oei#30] As ilusivas tendências no processo de inovação das identidades no mercado editorial

Toda vez que ouço alguém falar em inovação, eu lembro de 2001. Não do filme, do ano. O mundo vivia na antessala de uma utopia. A Internet ainda trazia mais promessas do que ameaças; tínhamos passado incólumes pelo primeiro quase apocalipse digital, o Bug do Milênio; e a agenda política mundial era de inclusão e equalidade, acordos comerciais equilibrados, sustentabilidade ambiental e social, e paz. Era quase uma revolução francesa futurista em que os cidadãos conquistaram Liberdade, Igualdade e Fraternidade se desarmando ao invés de se armarem.

Enquanto isso, na Barata Ribeiro, entre a Siqueira Campos e a Hilário de Gouveia, eu participava também de uma pequena revolução. Junto com uma galera jovem e esperta inauguramos a Baratos da Ribeiro, a segunda loja do grupo Livreiros Associados. Diferente dos demais sebos, a Livreiros Associados tinha o seu acervo, dividido entre a Baratos, a Gracilianos do Ramo, e o depósito, totalmente digitalizado e atualizado, graças a um zip drive que circulava na abertura e fechamento das lojas na mão de um menino numa bicicleta. Além disso, a Baratos ganhava os jornais e as ainda nascentes redes pelo seu jeitão de sebo megastore, e seu estilo despojado e jocoso, enquanto se firmava como um ponto de encontro da música e da literatura alternativas.

Livros em revolução permanente

Essa identidade que, para o lado de fora parecia harmoniosa, era objeto de muitos conflitos. Esse tripé de experiência de compra, tecnologia, e hub cultural tinha interfaces e interseções nem sempre pacíficas, o que fazia os sócios discutirem intensamente sobre o que diabos era a Baratos da Ribeiro. Inclusive, nos comentários de um texto sobre a loja escrito por Rafael Lima para o Digestivo Cultural, o sócio majoritário da empreitada, o saudoso Marcelo Lachter, confessou a sua incapacidade de entender que negócio era aquele que gerenciávamos.

Hoje, eu sei. Éramos apenas inovadores demais para nós mesmos, mas pelo menos estávamos nos perguntando “quem queremos ser?”.

Engraçado que no mesmo quarteirão havia uma loja que fazia o movimento exatamente oposto. Ninguém sabia qual foi o negócio inicial de onde ela surgiu, mas, quando chegamos, ela era uma LAN house, papelaria e videolocadora. A impressão é que, na ânsia de parecer original e diferente, a cada nova tendência que surgia, ela buscava encaixar o que estava na moda no seu rol de serviços e produtos. Naquele mesmo ano, por exemplo, passaram a vender um sanduíche, bem gostoso por sinal, de lombo canadense que o dono da loja afirmava:

– É o sanduíche mais inovador do Rio! Duvido já ter comido algo igual por aí.

E era verdade. Não havia sanduíche igual em lugar algum, mas isso não o tornava nada inovador.

Por isso, toda vez que ouço alguém falar em inovação eu lembro de 2001, da Baratos da Ribeiro e da Papelaria/LAN House/Videolocadora/Sanduicheria. E lembro que inovação não é um atributo de produtos, serviços, ou de pessoas, mas da ressignificação consciente das relações que se estabelecem entre as identidades dos negócios e dos seus clientes.

As inovações da Baratos, por menos espetaculares que possam parecer hoje, tiveram impacto significativo justamente por falarem a um público novo e/ou jovem, bem parecido com a equipe da livraria, que precisava de um espaço despojado, organizado, e fervilhante para interagir entre si e com uma série de manifestações culturais. Criamos uma alternativa engajada e bem informada que se contrapunha aos sebos antigos e às megastores que dominavam os shoppings. A identidade do negócio era maximizada e permitia ao mesmo tempo que os clientes exercessem as suas num ambiente seguro que espelhava seus valores e crenças. O que chamavam de inovação, muitas já testadas em outros ambientes, mas não juntas, era exatamente o que diferenciava a loja de tudo mais o que havia por aí.

Já as “inovações” da outra loja do quarteirão não emplacaram pois não falavam a ninguém. Tentavam responder a tendências ou apostas de diferenciação, sem olhar para quem fazia a loja e quem consumia na loja. Assim, em pouco tempo, a loja sucumbiu por deficiência, não de inovação, mas de identidade.

A Baratos, por outro lado, saiu de Copacabana, perdeu, assim, o da Ribeiro, deixou de lado o acervo digital, e se posicionou definitivamente como um espaço de movimentação política e cultural, evoluindo a sua identidade num constante diálogo com seu contexto, com as mudanças da sociedade, e com a transformação do seu público.

Inovação é identidade e longevidade

Enfim, toda vez que ouço alguém falar em inovação eu lembro que saber quem você é, ou, como disse sabiamente Marcelo Lachter, estar pronto a testar novas identidades e relações com o respeito devido ao seu público e à sua equipe, é o que vai lhe tornar verdadeiramente inovador. As tendências vem e vão, as tecnologias brilham e se apagam, sanduíches de lombo canadense entram e saem de moda, mas o desejo de ser cada vez mais um novo você é o que vai manter o seu coração sempre inovador.

[oei#29] A aparentemente inevitável escolha ontológica do uso da IA pelo mercado editorial

Outubro de 1989. A Nintendo coloca no mercado a Power Glove com a missão de mudar definitivamente a forma como interagimos com os videogames. Em vez de joysticks, usaríamos agora gestos para determinar como os nossos avatares iriam se comportar nos novos jogos digitais. O frenesi é tamanho que a Power Glove chega a ser a protagonista de seu próprio filme, “The Wizard”, com a maior estrela infantojuvenil da época: Fred Savage.

Dezembro de 2009. Um mês que a história do Cinema não iria esquecer. Em salas de todo o mundo, estreou Avatar, o filme que prometia marcar a passagem do cinema da era 2D para 3D. Na esteira do seu sucesso, até TVs foram lançadas onde, em nossos próprios lares, poderíamos acompanhar a inescapável revolução dimensional.

Outubro de 2021. No rastro do fim da pandemia da CoVid-19, apostando nas mudanças provocadas pelo “novo normal” nas relações sociais e de trabalho, o Facebook muda seu nome para Meta, mostrando o seu compromisso com o desenvolvimento de aplicações e tecnologias voltadas para a criação de uma realidade virtual compartilhada.

O que todas essas tecnologias têm em comum? Elas prometeram revolucionar suas mídias e mercados e não o fizeram. Pelo menos, ainda. Isso não quer dizer que elas não mudaram processos de produção, o formato de produtos, ou não promoveram a criação de novos nichos de consumo, mas elas com certeza não atingiram todo o hype que era prometido no seu lançamento.

Esse ciclo de adoção de tecnologias é descrito em quatro grandes fases pelo Gartner Hype Cycle:

  1. Gatilho de Inovação: O lançamento de uma tecnologia emergente gera muito interesse da mídia e do público, mas ela ainda não está consolidada, e há poucas aplicações práticas e muitas dúvidas sobre sua viabilidade comercial.
  2. Auge das Expectativas Infladas: Logo o entusiasmo pela tecnologia atinge o pico, prometendo benefícios (ou malefícios) e aplicações muitas vezes exageradas. Porém há um claro otimismo no mercado e a tecnologia ganha destaque na mídia, baseado em expectativas bastante irreais.
  3. Abismo da Desilusão: Eventualmente, as expectativas não se confirmam e o entusiasmo inicial diminui, pois a tecnologia não atende a todas as promessas que foram incensadas a seu respeito. Começam os questionamentos sobre a sua viabilidade e a sua utilidade prática.
  4. Rampa da Consolidação: Nesse momento, após a sensação de fracasso, as aplicações práticas da tecnologia começam a se tornar mais claras e o interesse se restabelece, com uma visão mais realista de seus benefícios. Há uma nova rodada de investimentos e testes mais concretos em diferentes áreas.
  5. Platô da Produtividade: Enfim, a tecnologia se consolida, com aplicações mais estáveis e amplamente aceitas, atingindo a sua maturidade pela adoção generalizada e pela sua incorporação nos processos de trabalho.

Segundo o último Gartner Hype Cycle, a IA está começando a descer a ladeira em direção ao Abismo da Desilusão, mas quando falamos do mercado editorial, que historicamente sempre foi mais lento na adoção de novas tecnologias, podemos dizer que estamos ainda no início do Auge das Expectativas Infladas. Porém, no nosso caso, as expectativas não são assim tão positivas.

Somos hoje assombrados por muitas ansiedades geradas pelas mudanças que a IA  tem promovido: a dificuldade de comprovar e cobrar pelo uso não autorizado de obras para treinar as IAs generativas; a substituição de profissionais experientes por IA em diversas etapas do processo de preparação das obras; e até a entrada agressiva de outros players, em especial da área de tecnologia, no mercado para competir pelos nossos cada vez mais minguados públicos.

Mas esse não é um medo novo. Toda mudança tecnológica gera ansiedades e provoca mudanças em processos e nas atividades profissionais, gerando insegurança e dúvidas num mercado cada dia mais desafiador. Qual será o papel do humano nos processos editoriais futuros? Qual será o impacto da Inteligência Artificial na produção das obras e na sua distribuição? Haverá um mercado quando a IA realmente fizer tudo o que ela diz se propor a fazer?

Em vez de ficarmos paralisados entre a negação dos impactos dessa tecnologia emergente e a fantasia de ruína, inspirada por Borges, sobre uma Biblioteca de Babel da IA, onde se gerariam automaticamente todas as possíveis versões de livros, por meio das combinações de exaustivas de letras até que, como acontece nos Nove Bilhões dos Nomes de Deus de Arthur C. Clarke, as estrelas comecem a apagar, há muito que podemos fazer.

Primeiro, precisamos entender que não existe apenas UM mercado editorial, mas múltiplos, e que cada um deles irá responder de forma diferente às mudanças que a tecnologia sugere. Por exemplo, apesar da já consolidada participação dos e-books no nosso mercado, uma área onde eles ainda podem crescer, mas ainda não têm muita aderência, é o nicho dos livros infantis. Isso se dá por uma demora na absorção da tecnologia ou pela natureza desse público?

Dois, é necessário nos debruçar sobre quais são os nossos reais diferenciais enquanto empresas e profissionais. Se o que torna nossos produtos ou serviços realmente diferentes for algo que a tecnologia faz melhor que nós, é preciso rever nossas propostas de valor. Ou, em alguns casos, isso inclusive pode nos fazer entender melhor quais atividades são merecedoras dos nossos tempo e atenção e geram valor para nossos públicos.

E, finalmente, podemos aproveitar essa sacudida no mercado para rever nossos propósitos, lembrando que nós usamos a tecnologia e não somos usados por ela. A nossa maior defesa e força nesse processo de adaptação está na clareza da nossa identidade e dos nossos valores.

Sim, o futuro já chegou, mas, como disse William Gibson, ele não está igualmente nem igualitariamente distribuído. E, dependendo de quem somos no mercado e da nossa relação com nossos parceiros e clientes, podemos escolher quais tecnologias iremos implementar e como elas irão nos mudar. A adoção abrangente de IA, apesar de todo Hype, não é um imperativo, mas uma escolha consciente a se fazer. Assim, como na clássica cena final de Jogos de Guerra, incorporar a IA em nossos processos, dependendo da proposta de valor e dos modelos dos nossos negócios, pode ser um jogo que se ganha escolhendo não jogar.

Mas, para isso, precisamos saber quem realmente somos.

E você? Quem é você no mercado editorial?

A IA em breve irá lhe perguntar.

[oei#28] A delicada simbiose entre o texto e o que o ilustra

O primeiro contato da criança com o livro é sempre através da ilustração. É a imagem, sozinha, ou acompanhando um texto, que atrai e mostra ao jovem projeto de leitora que numa folha pode-se guardar um som, um sentido, uma história à qual ela pode sempre voltar para se acalentar, se emocionar, se lembrar, e sonhar.

Com a evolução da capacidade de leitura e da maturidade da leitora, diz o senso comum, sempre tão comum e tantas vezes tão errado, que o texto puro deve começar a tomar conta da página. Ele deverá, sozinho, permitir que a leitora faça o salto de entendimento das palavras escritas, muitas vezes tão ou mais gráficas que uma imagem, para a ilustração que se formará na sua própria cabeça.

Porém, a ilustração nunca some. Ela apenas se transforma. Se exibe na capa, na escolha das fontes, nos detalhes paratextuais, na formatação dos capítulos, nos gráficos, e nos diversos elementos visuais que facilitam que a leitora se transporte para a realidade, real ou inventada, que o livro lhe propõe.

É nesse momento que o trabalho de ilustração e do design se confundem. Em que ponto o projeto gráfico termina e a ilustração começa? Afinal o próprio texto já não é uma forma de educar, explicar, demonstrar, mostrar, e, enfim, ilustrar?

Se olharmos para o livro em si como uma ilustração de um texto composto por toda uma gama de elementos potenciais gráficos, o momento da sua transposição para uma obra reproduzível para o alcance de um público será sempre um exercício de ilustração, seja ele apenas em palavras ou se valendo dos tão valiosos artifícios do desenho, da tipografia, do design, da fotografia, ou da colagem.

Dessa forma, o pretenso conflito entre a ilustração e o texto não se mostra real, pois a ilustradora não compete com a autora na construção do sentido da obra, mas oferece, sim, um suporte para a leitora entrar com mais concretude no mundo do livro e dialogar com uma nova interpretação e representação, em forma de imagem, do que o texto sugere.

A ilustração, que acompanha a leitora desde a infância, continuará sempre ao seu lado, conferindo novos sentidos e novas interpretações ao texto, o que aumenta a pluralidade do já rico trabalho da autora. Assim, compraremos os livros pelas capas, os leremos pelas suas imagens, e arte-finalizaremos suas ilustrações com a nossa imaginação devidamente estimulada pelas palavras do seu texto. Desenharemos, enfim, junto com as suas ilustradoras, a vivência do livro na tela da nossa mente. Afinal, podemos até entender o que o livro nos conta, mas sempre será melhor que alguém também o desenhe para nós.

[oei#27] O assustador risco do livro enquanto um ativo cultural e financeiro das editoras

Um livro pode ser muitas coisas. Quanto ao seu formato, ele pode ser físico, em áudio, ou digital. Em relação ao seu objetivo, ele pode ser uma fonte de informação, uma ferramenta de aprendizado, um parceiro de diálogo e reflexão, ou uma porta para uma outra realidade, que nos promete diversão ou entretenimento. Se considerarmos o seu papel dentro do mercado editorial ele pode ser um projeto, um produto de um projeto, ou mesmo um investimento dentro de um catálogo, com o qual buscamos atingir resultados financeiros, artísticos, culturais ou sociais. Mas, em todas essas suas encarnações e pluralidades, uma coisa todos os livros serão: arriscados.

O livro, seja como produto, como projeto, ou como investimento, é arriscado. Ele é uma ideia que, ao ser planejada, executada, e distribuída ao seu público, por toda uma complexa cadeia de valor, toma concretude, mesmo quando digital, e corre diversos riscos que podem impedi-lo, ou não, de atingir os objetivos aos quais ele se propõe em sua concepção. Ser arriscado não quer dizer que ele é mais afeito ao fracasso ou ao sucesso, mas que há pouca certeza quanto aos eventos que irão ocorrer ao seu redor que poderão impactar positiva ou negativamente os seus resultados. E, dadas as informações do mercado, ele não é só sujeito a muitos riscos, ele é arriscadíssimo.

Quando olhamos para as pesquisas sobre o mercado editorial, tanto no Brasil como no exterior, as notícias nunca parecem boas. Sempre temos sinais de retração, com o fechamento de pontos de vendas, concentração de resultados em poucos livros, gêneros, editoras e vendedores, e, inclusive, dados, nem sempre confiáveis, que indicam que a grande maioria dos títulos não consegue passar a barreira de mil volumes vendidos. Isso faz com que o faturamento das editoras se concentre em alguns títulos de destaque e no retorno contínuo de alguns livros de catálogo que financiam toda uma operação que aparenta sempre estar só um pouco acima do que a constituiria como um investimento de retorno baixo demais para valer a pena. Tudo isso constitui o livro como um investimento arriscado, tanto nos critérios “artísticos” ou culturais, quanto nos financeiros e econômicos. Assim, viveríamos, como bem colocado por Ênio Silveira, fundador da editora Civilização Brasileira, entre o feijão e o sonho:

O editor, que se preze como tal, vive sempre oscilando entre dois polos, bem caracterizados pelo livro de Orígenes Lessa, O Feijão e o Sonho. Se ele se dedica só ao feijão, ele não é bom editor. E se ele se dedica só ao sonho, ele quebra a cara muito rapidamente, numa sociedade capitalista ele está fadado ao insucesso. O contraponto feijão/sonho é que dá a justa medida da qualidade de um editor – (da Coleção Editando o editor, n.3)

Porém, mesmo com esses flagrantes riscos envolvidos na nossa atividade, quando vamos nos debruçar sobre como os livros, enquanto projetos ou produtos, são geridos, ou mesmo sobre o retorno do investimento realizado por todos os integrantes dessa cadeia de valor, os dados disponíveis são poucos, pouco claros, pouco conclusivos, e, em alguns casos, completamente inexistentes.

Se o mercado do livro é um mercado tão arriscado por que razão não temos estratégias ou ferramentas específicas para lidar com esses riscos? Será que o livro enquanto uma “não-commodity” impede que tenhamos estratégias genéricas ou comuns que se apliquem a todos os lançamentos ou produtos de catálogo? Ou será que o baixo retorno esperado do livro enquanto investimento não compensa o gasto com estratégias mais robustas de gestão de risco que, além de poderem ter pouco impacto, irão encarecer ainda mais o produto final?

Mesmo que o mercado editorial se apresente como uma indústria de baixo retorno sobre o investimento, sempre vítima de um conflito entre o atingimento dos seus nobres objetivos de promoção cultural e intelectual, e sua sustentabilidade financeira, a importância do livro como símbolo e ponto central do nosso processo civilizatório pede insistentemente que a gestão dos seus riscos seja aprimorada a fim de aumentar as possibilidades de sucesso dos seus empreendimentos individuais e do próprio setor como um todo.

Para começar a endereçar esse dilema, é preciso estabelecer uma conversa com os diversos setores envolvidos com o livro, para buscar entender como os seus riscos, enquanto produto, projeto e investimento, são considerados, gerenciados, mitigados, eliminados, absorvidos e remediados no processo de gestão editorial. Só a partir do entendimento do conceito de risco para aqueles que fazem do livro a nossa profissão, poderemos encontrar, através de uma adequada gestão dos riscos, o equilíbrio entre o capital simbólico e financeiro do livro, e permitir que de alguma forma possamos fazer as pazes entre o feijão e o sonho que alimentam e sustentam o nosso propósito de vida.