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O discurso final

Agora que a janela de filiação partidária fechou e os quadros eleitorais estão quase fechados, vamos focar no que interessa: o discurso de fechamento dos debates eleitorais. Com a perspectiva de que os principais candidatos fujam deles, ainda resta a esperança de que, aos moldes de Leonel Brizola, alguém faça um discurso histórico para fechar esse terrível período da nossa história. Afinal, até os fãs do Iron Maiden sabem, discursos históricos são eternos e nos fazem ganhar guerras. Assim, como contribuição, segue a minha sugestão de discurso para qualquer candidato que queira tirar a besta fera do poder:

Povo do meu Brasil,

Agora encerramos mais uma etapa do processo eleitoral e vamos às urnas para decidir o destino da nossa coletividade, daquilo que chamamos Brasil.

Nos últimos quatro anos vivemos sob o terror de um governo que proclamava “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. E o que menos vimos foi a defesa da nossa nação ou o respeito a um poder superior.

Vimos:

A transformação do Brasil num pária mundial, um país de milicianos, desmatadores e grileiros
O desrespeito aos seres humanos, de todas as etnias, credos e orientações
O aumento do desemprego, da precarização do trabalho; a volta da fome e da inflação
E a exaltação da violência armada contra as minorias e as populações mais vulneráveis

O que esse discurso populista e falso escondia é que ele queria um Brasil de criminosos armados acima de tudo, um Deus do ódio acima de todos, e Bolsonaro, e seus familiares e asseclas, acima de Deus.

Afinal, nos últimos 4 anos, nessa tirania fascista tivemos um desgoverno que zombou da pandemia mundial, da morte e da dor de doentes e enlutados; que virou às costas a nossos irmãos da América Latina e do mundo, pra promover a destruição da natureza e dos povos indígenas e ignorar as mudanças climáticas; que atacou a democracia e promoveu a mentira e a desinformação; que trocou favores, em detrimento da saúde e da educação, com as piores pessoas desse país, em troca da sua manutenção no poder, de favores pessoais, de dinheiro e até de ouro, usando o nome de Deus em vão.

Nessa tirania fascista e corrupta, fomos vítimas da vaidade e da incompetência de um homem fraco e desequilibrado que nos afastou da comunidade global e dos valores que ele fingia apregoar. Nos últimos quatro anos fomos um Brasil abaixo de todos e esquecido por Deus.

Mas você pode mudar isso. Nessa eleição, a sua escolha pode nos tornar melhores. Não um país acima de tudo, mas um país irmão em uma comunidade mundial; um país com respeito a todas as pessoas e a todos os credos; um país onde ninguém esteja acima dos outros e em que o presidente seja alguém escolhido para atender à sua população, ao invés de seus interesses escusos.

Por isso, no seu próximo voto, escolha a paz, escolha o respeito, escolha o amor. Vote num Brasil, não acima de tudo, mas um Brasil formado por nós. Pois o Brasil somos nós.

Muito obrigado e bom voto. O Brasil somos nós.

Enfim, não importa em quem você queira votar, vamos dizer o não abafado de nosso peito contra tudo que está aí.  Como dizia Belchior, ainda não é hora de levar flores à cova do inimigo. É hora de lutar.

Começou.

Dona Vanna e eu

Comecei a frequentar a Leonardo da Vinci cedo. Tinha de uns 7 para 8 anos quando minha mãe, na saída das suas aulas do IFCS, me levava na livraria para deixar boa parte do seu dinheiro em troca de livros que ela não encontraria em qualquer outro lugar.

A loja era imponente. Um corredor largo e comprido, cheio de estantes com livros de diferentes tamanhos e cores, em todas as línguas do mundo. Ao contrário das livrarias que conhecia, não havia um balcão. Dona Vanna e seus funcionários se sentavam em cadeiras de espaldar alto, atrás de uma longa mesa. Não havia sinal de caixas registradoras ou qualquer outra coisa que lembrasse a troca de mercadoria por dinheiro. Lá você não deixava nem levava bens materiais. Lá, você deixava a sua vida e alimentava a sua alma.

Os colegas de faculdade da minha mãe costumavam repetir, quase como uma parábola, a história de um aluno de filosofia que tinha furtado os 24 volumes das obras completas de Freud, um volume por semana, nas barbas da dona Vanna. Por azar, foi pego furtando o sumário da Imago, que era vendido separadamente. Banido para sempre da loja, dizem, perdeu a vontade de viver, abandonou a filosofia e foi cursar economia que estava mais próximo dos seus instintos vis.

Os anos passaram, cresci e passei a frequentar a loja sozinho. Em busca de quadrinhos e RPGs.

Com 11 anos fiz minha primeira reserva: o primeiro volume de L’Art de la BD de Duc. O preço era um acinte. Especialmente por causa do câmbio paralelo que dona Vanna criou com o tal dólar Da Vinci. Pedi para segurarem o livro por 15 dias, prazo máximo de reserva, para conseguir juntar 2 mesadas e pagar pela obra que, acreditava, iria me tornar um roteirista de quadrinhos. Com muita dificuldade e sendo obrigado a vender alguns quadrinhos nos sebos da Tiradentes para completar o valor, consegui honrar meu compromisso.

A segunda reserva foi mais complicada. Pedi para separarem para mim a caixa do Star Frontiers, um rpgzinho espacial da TSR, mas não sabia se ia conseguir pagar. Estava tentando fazer uma espécie de ação entre amigos para dividir o custo, mas não estava dando certo. A minha ansiedade era tal que ia na Da Vinci todos os dias só pra ver o RPG reservado. Dona Vanna, sádica leitora de mentes, me pressionava:

– Se não comprar no prazo, vou vender pra outro.

Vendeu.

Quando consegui o dinheiro, tinha passado uns dois dias do limite da reserva e ela, como prometido, vendera o jogo para outra pessoa. Fui obrigado a comprar a caixa azul do expert do D&D BECMI, o que, no fim das contas, foi uma melhor opção e, agora, pensando bem, mudou a minha vida.

Do alto da sua pretensa maldade, dona Vanna nos fazia o bem.

Um dia, no caminho pro colégio, entrei na loja no horário que estava abrindo. Não sei por que só o faxineiro estava lá e me deixou largado enquanto esperava os vendedores chegarem. Não percebi na hora, mas fiquei sozinho e de mochila na loja. Poderia ter levado, sem ninguém saber, todos os RPGs e quadrinhos que desejava, mas isso, confesso, nem me passou pela cabeça. Fiquei, como um bom servo de dona Vanna, apenas apreciando o que não conseguiria comprar e buscando na minha mente maneiras de honrar as reservas que tinha feito. No colégio, quando contei essa história, fui chamado de otário pelos meus colegas, mas, graças à dona Vanna, descobri que era apenas honesto.

Me tornei um jovem adulto e a minha relação com ela, ou com a loja, melhorou.

Aprendi a garimpar e a pedir livros que não tinham na loja, o que me dava mais tempo para guardar o dinheiro necessário para quitar minhas dívidas. Passei dos RPGs pro Tarot, do Tarot pros pocket books, dos pockets pros livros de filosofia, psicologia e ciências sociais, e, enfim, me tornei um cliente de todas as seções da loja.

Dona Vanna, tenho certeza, me ensinou a ser um melhor leitor.

Acabei me tornando eu mesmo um livreiro, e, apesar de ser um colega de profissão, continuei a respeitar e a temer dona Vanna. O medo talvez fosse exagerado, mas o respeito sempre foi devido.

Nessas voltas que a vida dá, acabei, após sócio de duas livrarias, indo trabalhar num prédio próximo à Da Vinci. Um colega do trabalho, apreciador de Cultura Cervejeira, sua História, suas Circunstâncias,  estava procurando livros realmente especiais sobre o tema e o levei na dona Vanna.

Ao contrário de mim, que cresci sob o regime de terror de dona Vanna, ele se sentou à sua frente com naturalidade, bateu altos papos com ela em francês sem o menor pudor e saiu de lá com uma lista de livros e revistas encomendados.

Um dia seu telefone tocou no trabalho e eu atendi. Tremi, era a voz da dona Vanna:

– Por favor, avise ao seu Luís Guilherme que estou em Paris e achei quase tudo que ele me pediu.

Foi isso mesmo que você leu: dona Vanna estava em Paris procurando os livros que ele encomendou. Naquele momento eu descobri quem eu queria ser quando crescesse.

Meio sem aviso, após uma grande expansão, a Da Vinci definhou, Dona Vanna sumiu da nossa vista, e colocaram no lugar da loja um pastiche de comércio que não merece o nome do templo criado por ela.

Ontem fiquei sabendo do seu falecimento e, sinto, uma parte de mim também se foi. Ela não sabia meu nome, nossos contatos foram poucos e comerciais, mas é realmente espantoso como a sua figura icônica foi tão importante na minha formação como leitor. Nesses tempos em que a cultura está sendo destruída no país, a sua falta será ainda mais sentida. Que todos nós tocados pelo seu rigoroso amor pelos livros consigamos seguir o seu exemplo de honestidade intelectual e paixão pela cultura.

Arrivederci, maestra!

Deixe de ser patriota, pergunte me como

Todo país é uma farsa. Você prende um bando de gente num território; estabelece fronteiras artificiais para “impedir” o uso dos recursos naturais dessa terra por gente que você não gosta; define um modelo de governança que lhe dê vantagens sobre o restante da população; controla a circulação de valores inventando um dinheiro que só você pode imprimir; e tira da cartola uma fantasia romântica sobre essa conjunção de povo e terra, desenha uma bandeira pouca imaginativa, escreve uma marchinha safada, que chama de hino, e dá a isso o nome de cultura. Presto! Temos um país.

Pessoalmente, prefiro o método Marina Lima “você me abre seus braços” de criação de país, mas esses passos acima normalmente são os que as pessoas seguem para criar essas fantasias patrióticas que dividem o mapa-múndi como um livro de colorir para adultos com baixa capacidade cognitiva.

Nenhum problema em acreditar em coisas que não existem. Religião e Super Heróis fazem sucesso até hoje e são, pelo menos no segundo caso, fantasias basicamente inócuas. O problema é que os países, assim como os relacionamentos românticos, na acepção do Miguel Falabella, são como submarinos: até bóiam, mas são feitos para afundar. E o seu fracasso se dá justamente pela fantasia romântica que gera aquele sentimento patológico de submissão chamado patriotismo. Se encararmos a nossa relação com os países, e até com as pessoas, com mais pragmatismo, só teremos a ganhar. Em vez de ficar sofrendo com problemas que achamos decorrentes da “cultura” ou do “jeito de ser” do “brasileiro”, por que não resolvê-los deixando as emoções de lado?

Exemplo? Dou até dois.

Primeiro: o país é ingovernável. OK, divide o território. Pra que ter um país desse tamanho? Porque a gente fala português? Valha-me, Deus. É só manter uma estrutura compartilhada mínima de relacionamentos, definir constituições estaduais respeitando os grupos populacionais mais próximos, suportar sistemas educacionais e de saúde compartilhados, e montar um mercado comum entre esses estados para organizar e pronto. Ah, e aproveitando podemos acabar com as forças armadas, que, no nosso caso, são apenas um tipo de decoração que só atrapalha.

Segundo: os governantes se locupletam e não pensam no bem estar da população. OK, vamos transformar o poder em ônus e não em bônus. Em vez de basear a concessão das chaves do reino nesse concurso de popularidade disputado por gente feia e burra, vamos sortear os cargos atualmente eletivos. Tenho certeza que seria impossível sair com um presidente pior do que o que temos atualmente. Ah, e a democracia? Relaxa, o povo vai votar. De 2 em 2 anos, votamos se esses sorteados estão fazendo um bom trabalho ou não. Os que fazem um bom trabalho são retirados do governo e do sorteio para sempre, os que não fazem são exterminados em praça pública. Duvido alguém mais querer ser político.

Viu? Facinho de resolver. É só deixar as fantasias megalomaníacas ou paranóides de lado que rapidinho a gente acha uma solução pra tudo.

Se a gente tivesse menos romantismo com essa construção torta, essa colônia passada de pai pra filho, e movida aos trancos e barrancos através de sucessivos golpes de estado capitaneados por forças armadas ociosas e com fantasias de poder, a vida seria mais fácil e melhor. Abandonar a fantasia de futuro brilhante para esse conjunto de território e população é o melhor caminho para aprendermos a viver confortavelmente com a nossa mediocridade. E isso se aplica a todos os países do mundo.

Afinal, o Brasil, como o restante da comunidade mundial, não tem um destino manifesto. Isso é só conversa de vendedor de carro usado pra te empurrar um acordo ruim, contando com a ideia que você sente orgulho por algo que não existe: ser brasileiro. Patriotismo é uma fantasia tão fora da realidade quanto discutir se o Capitão América é melhor que o Homem de Ferro. Viver em comunidade, sem firulas e com autocrítica, é que são elas.

Agora, se você não concorda com nada do que eu disse, fique à vontade para sair de camisa do brasil, fazendo arminha com a mão, e apoiar um genocida que se diz um Messias para se apropriar do erário nacional e favorecer sua família de incompetentes e seus amigos milicianos. No seu futuro, como no do Brasil, eu só vejo remorso e dor. Eu, por outro lado, decidi viver com consciência, sem sujar as minhas mãos de sangue defendendo gente que não merece meu respeito. Eu preferi ser pragmático a ser patriota. É a maneira mais ética e mais racional de se viver, pode acreditar.

Aqui e ali

Hoje sonhei que estava ao mesmo tempo aqui e ali. Havia um futuro ali, com cores, beleza e movimento; mas o passado, ou melhor, ou pior, o presente do aqui ainda me prendia, com seus alarmes e alertas, suas mensagens de celular e videoconferências sem fim. No sonho, era como se eu estivesse à caminho do ali, mas ainda sem tirar um pé do aqui.

Quando acordei, anotei o sonho num caderno que tenho aqui, cheio de fantasias e desejos que imagino realizados ali, e percebi que, ao mesmo tempo que quero ir para ali, tenho medo de deixar aqui.

Ali representa satisfação, amor e emoção. Aqui representa dor, marasmo e humilhação. Mas ali é incerto, e tenho medo de me frustrar. Aqui é menos incerto, mas tenho medo de me afogar.

Não lembro de quando fiquei sabendo que havia ali. Talvez já tenha vivido ali, antes de viver aqui, mas já não sei mais. Durante um tempo, longo demais, não fiquei nem aqui, nem ali, e pedi a Deus que me levasse para algum lugar. Ele me trouxe para aqui, e agradeço por não estar mais em lugar algum. Porém, agora, não me canso de sonhar com deixar aqui e chegar ali.

Ali eu teria liberdade e diversão. Aqui é só medo e opressão.

Ali eu poderia ser mais eu mesmo. Aqui eu preciso esconder quem sou por medo de retaliação.

Ali as coisas crescem e se transformam. Aqui as coisas morrem e tentam ser salvas por ganância e sede de poder, não por merecimento.

Ali é a juventude que eu tive; a alegria de viver. Aqui é a decrepitude alheia, o formalismo, os velórios; o medo de morrer.

Ali não é aqui. E aqui não é ali. E isso já bastou pra eu quase me decidir.

Parece fácil escolher entre aqui e ali, mas não é. Afinal, um dia, aqui já foi ali e representou tudo o que o novo ali hoje representa. Ali e aqui não são só uma questão de espaço, também de tempo. Todo lugar é ali quando não se está lá. E assim que se está lá, ali ele se torna aqui.

Mais importante do que o aqui e o ali, é quem sou lá, quer dizer, lás. Quando sou novo e cheio de promessas, para o aqui eu sou um ali. Quando o tempo passou e me tornei antigo e repetitivo, sou o espelho do aqui para o qual ninguém mais quer olhar.

Como um papel de parede bonito e vistoso, que chama a atenção logo após a sua aplicação, aos poucos vou me confundindo com a parede e sumindo naquilo do que eu achava que não fazia parte.

Mas dentro do meu coração, eu sei que não pertenço aqui e, talvez, nem pertença ali.

Fico buscando, em sonhos e medos, razões para ir e pra ficar. Pois, sempre resta uma esperança que eu possa, ou algo possa, transformar o cansado aqui num excitante ali. E, assim, eu não precise me mudar.

Indeciso, com medo e angústia, ponho um pé pra fora do aqui, nos meus sonhos, nas minhas conversas, em desenhos e palavras cruzadas feitas escondido. Mas não saio inteiramente, nem me comprometo com o caminho para o ali, pois não sei se vou chegar.

Hoje, como ontem, e, espero diferente de amanhã, a decisão é não decidir entre o ali e o aqui. Mais uma vez, a decisão é ficar nem cá, nem lá. Melhor voltar a dormir e sonhar com mapas que venham me salvar.

Meditação Interrompida

Respire fundo e limpe sua mente de todos pensamentos negativos

Caramba, hoje fez um ano que o Jota morreu. Porra, parece que foi ontem. Pra dizer a verdade, parece que foi ontem que eu o conheci. Nunca vou esquecer, subindo a ladeira que levava pro colégio, a professora de estudo dirigido passou pela gente, e ele me cutucou dizendo maliciosamente: “Não imagina o que eu faria com essa mulher num quarto escuro”.

O pior é que eu nem imaginava mesmo. Eu tinha 6 anos, porra. Agora, eu tenho certeza que ele imaginava. Mas não tenho certeza O QUE ele imaginava. Mas coisa boa não era. Pra dizer a verdade, devia ser até coisa boa mas não para uma criança de seis anos. Fazer o quê? Ele sempre foi precoce. Até pra morrer. Meu Deus, que feio pensar isso, cala-te boca.

Se a sua mente vagar, a traga para perto de si.

Como era o nome dessa professora mesmo? Valéria, Vanessa… acho que tinha algo com V. Ou era Maria. O Jota é que tinha uma piadinha. Um lance tipo Maria Vagina. Maria Virgínia. Deixa pra lá. Nunca vou lembrar.

Pra dizer a verdade, só lembro de sair pro recreio e ela esperar a gente na entrada do pátio com aquela mesa cheia de copos de toddy geladinhos. “Toma Toddy, querido”, ela convidava sensualmente.

Os nossos pensamentos apenas passam por nós. Eles não são quem somos.

Quanto tempo faz que eu não bebo um toddy. Será que era bom mesmo ou é só uma memória afetiva da infância? Acho que o contexto ajudava. A tal Maria Vagina toda carinhosa, calça jeans atochada no corpo, com aquele copinho de leite achocolatado gelado na mão; a gente todo feliz, sem preocupações, correndo pra se divertir no recreio… meu Deus. Tem sensação melhor?

Será que eu pensava nisso mesmo? Com seis anos? Aí é hipersexualização demais. Vai ver era culpa da Xuxa na televisão. Aqueles shorts e aquelas danças Era impossível a gente não ficar maluco.

Deixe seus desejos e medos de lado. Liberte-se. Liberte sua mente.

Jota, Xuxa, Maria Vagina. Por que diabos a gente não consegue se libertar dessas ideias obsessivas que fazem tanto mal pra gente? Por que a gente vive tão angustiado com o futuro e com o passado? A gente vai morrer mesmo, que nem o Jota morreu. Para que se angustiar? O passado já foi. O futuro vem de qualquer jeito. Pra dizer a verdade, o que a gente consegue controlar da vida, mesmo?

Acho que nada. Queria ser criança de novo. Sem preocupações, sem medos, apenas com a certeza que a tia Ana Lúcia estaria me esperando com um toddy geladinho antes do recreio. Isso! Esse era o nome dela tia Ana Lúcia. Ufa, lembrei. Pra dizer a verdade já estava ficando angustiado de não lembrar.

Deixem os ressentimentos com o passado e as angústias com o futuro de lado. Viva apenas o agora. Respire fundo e viva o presente.

Caramba, Ana Lúcia. Ela morreu também. E quando a gente estava no colégio. Foi câncer, eu acho. Coitada. Ficou carequinha. A gente chegava lá no refeitório e lá estava ela comendo granola com leite, quietinha, quase sem forças. Que tristeza.

O pior é que eu comi granola hoje no café. Será que estou com câncer? Ai, que horror pensar nisso. Cala te boca. Cala te boca. Pobre Ana Lúcia, pobre Jota, pobre de mim.

Palavras certas, pensamentos certos, ações certas. Esse é o caminho da meditação.

Será que se eu colocar toddy na granola ficaria bom? O Jota uma vez falou disso, não? Sei lá. Pra dizer a verdade, não lembro mais de nada. Amanhã eu tento. Deve ficar bom. Vai ficar bom, não? Sei lá, sei lá.

Compra e Venda

Desde o início da avaliação, ficou claro para o corretor que o casal estava ansioso. Especialmente a esposa. Isso não era incomum. Todos ficam tensos quando tem o valor do seu imóvel avaliado. Definir o preço de uma casa ou de um apartamento é um exercício de corda bamba. Ninguém quer ser subavaliado e perder dinheiro, nem superavaliado e não atrair compradores.

Porém, a tensão exibida pelo casal, especialmente pela esposa, ia além disso. Havia algo a mais. Algo que ele precisava investigar.

– Então, qual é o veredito- a esposa se adiantou?
– Bom,- o corretor começou- é um imóvel interessante. Sólido, bem localizado; precisa de algumas reformas, afinal o prédio é bem antigo, mas isso não é problema.
– Ótimo, ótimo- a esposa suspirou.
– Mas…
– Mas?
– Mas eu sinto que há algo estranho. Algo que não estão contando. Há algo que esconderam de mim?
– Viu, eu te disse que ele ia perceber- ela ventilou suas frustrações para o marido.- Eu te disse. Era impossível não perceber.

O corretor, intrigado, tentou esclarecer:

– Podem me explicar do que estão falando?
– É uma besteira- o marido minimizou.- Ela tem a impressão que a casa é mal assombrada. Doideira. Relaxa, amor. Já te disse que isso é coisa da sua cabeça.
– Ah, não me venha com essa, querido. Já esqueceu tudo o que a gente passou aqui?
– Tipo o quê?- o corretor quis saber.
– Você quer mesmo saber? Eu vou te contar. Assim que a gente mudou, não deu duas semanas, a tubulação do banheiro estourou. Tipo uma cachoeira. Inundou o apartamento todo.
– O prédio é antigo- o marido contemporizou.
– Tá, eu sei. Mas isso não explica o que os pedreiros acharam na parede.
– O que eles acharam?- o corretor perguntou.
– Facas. Facas e mais facas. Enfiadas no meio do concreto. Como se fosse algum tipo de magia negra.
– Exagero, eram só umas quatro ou cinco facas- o marido esclareceu.
– E o lance do gás?
– Do gás?- o corretor começou a ficar assustado.
– Os técnicos da companhia de gás vieram aqui colocar a tubulação nova e quando tiraram a antiga antiga ela estava cheia de símbolos estranhos pintados em vermelho, tipo tridentes e capetas.
– Exagero.
– E a vez em que o fogão quase explodiu na sua cara foi um exagero?
– Um acidente.
– Você quase ficou cego!
– Parcialmente… parcialmente…
– E as luzes, hein?
– O que tem as luzes?- o corretor perguntou
– No meio da noite, elas acendem e apagam como se estivessem mandando mensagens. Mensagens do além. Do além!
– Que nada. Parece tipo uma boate, daquelas bem tranquilas. Nem me acorda mais- o marido complementou.

Era visível o medo no rosto do corretor. O marido tentou acalmá-lo:

– O senhor não fique assustado, é que ela encasquetou que o fantasma da minha madrasta, que morou aqui antes da gente, está aqui pra me matar.
– Encasquetei? Ela não te expulsou do enterro do teu pai, hein? Dizendo todas aquelas palavras estranhas em sei lá que língua.
– Sim, expulsou, mas…
– E aquela caixa com o rato morto que deixaram na porta do nosso antigo apartamento?
– Nada ficou provado. Nada.
– Bom, então, amigo- o marido explicou ao corretor-, por isso ela está preocupada que esse lance da casa ser mal assombrada possa diminuir o valor de venda. E como a gente quer sair daqui logo…
– Quer, não! Precisa. Senão o fantasma dessa velha vai matar a gente.
– Retomando, então como a gente quer vender logo, ela quer saber se tem uma maneira da gente vender bem esse imóvel para comprar outro.
– Entendi- o corretor começou a se recompôr.- Posso fazer uma pergunta pra senhora?
– Claro.
– Se a senhora estava sendo atormentada por esses espíritos, esse quase poltergeist, por que não se mudaram logo?
– O mercado estava em baixa pra vender e a gente não queria perder dinheiro.
– Entendi.
– Então, será que a gente consegue vender bem esse apartamento mal assombrado?- o marido pediu a avaliação do corretor.

O corretor coçou o queixo, olhou pro pé direito alto, pro teto cheio de arabescos, chutou de leve uma das paredes como se estivesse testando a estrutura e se pronunciou:

– Acho que tem um jeito. Acho que tem um jeito.

Na semana seguinte, o corretor postou nos sites de imóveis o seguinte anúncio:

“Oportunidade ÚNICA! Apartamento de 110 m², dois quartos e dependências, sem vaga de garagem. Último imóvel ainda mal assombrado na Zona Sul do Rio. Apenas para os verdadeiramente corajosos ou descrentes. Motivo de venda: fantasma de madrasta quer matar o proprietário. Clique aqui para pedir mais informações ou marcar uma visita. Sol da manhã.”

O corretor acertou na mosca e em duas semanas o apartamento foi vendido por um valor acima do de mercado. O casal comprou outro bem melhor, sem fantasma, com vaga na garagem, varanda e condomínio com playground e piscina. Já o fantasma da madrasta ficou feliz de se livrar do enteado e se acalmou. Se bem que os novos moradores, um casal de ateus materialistas, mas cheios de superstições, tem o hábito de cantar música sertaneja na madrugada, o que está começando a dar nos seus nervos espectrais.