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Um gigante de visão

Conheci Marcelo Lachter no dia em que, num momento de desespero, resolvi vender minha biblioteca para pagar uma conta de telefone exorbitante que não era minha culpa. Ele foi à minha casa, comprou meus livros, me deu bons conselhos e 9 meses depois me fez uma proposta que mudou a minha vida: “Quer ser sócio numa livraria?”

Aceitei, sem pensar duas vezes. Me tornei seu sócio na Baratos da Ribeiro, que, para mim, durou apenas 9 meses, mas que existe até hoje, capitaneada por mais um de seus tutelados e meu amigo, Maurício Gouveia.

Marcelo era um gigante em todos os sentidos. Alto, calmo, cheio de sabedoria; juntava hordas de pessoas interessantes ao seu redor. Sempre tinha algo inteligente e cheio de coração a dizer. Apesar de ter um problema físico de visão, que poderia parecer um impeditivo para que trabalhasse com livros, ele tinha o melhor olho que já vi. Sabia escolher pessoas para cargos e amizades, livros para as lojas e em 2000 já tinha visto a possibilidade e tentado criar algo bem melhor do que a Estante Virtual que temos hoje.

Quando a nossa sociedade na Baratos acabou, ficamos afastados por algum tempo, mas logo busquei retomar o contato e as rusgas sumiram rapidamente.

Tentei voltar ao mercado de livros usados 5 anos depois do lançamento da Baratos e ele foi convidado para o lançamento da minha nova loja. Apareceu, analisou as estantes e os livros com seu olho clínico, e me disse: “Você está cobrando muito barato, assim a loja não vai se manter”.

Não deu outra. Fui à falência em menos de um ano e, no fechar das portas, o chamei novamente para comprar todo o meu estoque, que ele levou barato mas com justiça.

Depois de abrir e fechar a minha carreira como livreiro, ele me ofereceu uma carona. “Eu sei que não consigo ver quase nada, mas consegui tirar a carteira. Vamos nessa, pode confiar”. Como fiz antes, confiei. E lá fomos nós de noite, em direção à minha casa, com ele usando as lanternas dos carros da frente como guias.

Quando me deixou na porta do meu prédio, ele me disse: “Comecei a dirigir, pois acho que um adulto que não dirige tem algum problema em tomar o controle da própria vida”. Impactado, um mês depois, tomei controle da minha e comecei a trabalhar de carteira assinada. Quanto a dirigir, ainda não aprendi, mas sempre que entro num carro lembro dele e do seu conselho.

Depois dessas experiências, fomos nos esbarrando pela vida esporadicamente. Fui no lançamento do seu galpão de livros; me envolvi, parcialmente, numa ideia doida que ele teve de criar um curso para executivos baseado na série 24 horas; participei de uma maratona para comemorar o seu aniversário, qual ele mesmo arriou às 11 da manhã; e nos falamos bastante para apoiar um antigo livreiro que estava passando por um momento de dificuldades. No ano passado, lancei um projeto de narrativas sobre o 11 de setembro e pedi o seu depoimento, que ele me enviou com muita generosidade.

Ontem fiquei sabendo do seu falecimento. Nas redes sociais, toda uma geração de livreiros que ele criou fez coro com o que acabei de dizer. Era um cara gigante, de grande visão, com um coração enorme, que mudou a vida de todos que conheceu. Ele, sem fazer esforço, foi responsável por carreiras, empreendimentos, experiências de vida marcantes, e até casamentos e, consequentes, nascimentos.

Marcelo foi uma dessas pessoas que vieram ao mundo para transformar a vida dos outros, e, mesmo não tendo filhos, deu à luz um país mais inteligente, culto, cheio de compaixão e alegria. Que a sua memória seja uma benção a todos nós. Zichrono livrachah.

O de sempre

05:47 AM

Rod: E aí, cara? O que está rolando?
Lelê: Sua mãe, aquela gorda?
Rod: AHAHAHAH. Ah, não enche. Falando sério, o que está rolando?
Lelê: Na real? Nada. E por aí? O que está rolando?
Rod: Sua mãe? Sacanagem. Nada também.
Lelê: Blz.
Rod: Falow. Vou dar uma cochilada.

Lelê começa a trabalhar. Abre o e-mail, responde algumas mensagens, retoma uma apresentação na qual estava trabalhando no dia anterior. Sem sucesso. Às 8:00 AM tem a primeira reunião. Depois a segunda, e a terceira. Tenta retomar a apresentação, mas não consegue mais uma vez. Dá comida pro peixe e lê os jornais online.

Rod dorme. Mal. Acorda.

11:12 AM

Rod: Acordei. E aí? Tudo bem?
Lelê: Tudo. Acabei de dar comida pro peixe.
Rod: Uau. Que emoção!
Lelê: Total. Dormiu bem?
Rod: Nada. Vou começar a trabalhar.
Lelê: Blz.
Rod: Falow.

Rod revisa as pendências no sistema. Tem pouca coisa, mas fica cansado só de olhar. Como não é nada urgente, faz com calma e atenção. Fica com fome, põe a máscara, e vai na rua comprar uma tapioca e um açaí. Leva a comida pra casa, almoça e assiste um episódio de um reality show. Fica com inveja desse povo que, mesmo confinado, não precisa trabalhar. O chefe manda uma mensagem e ele deixa as pendências de lado para atender à sua urgência urgentíssima.

Lelê prepara o almoço e come na frente do computador, enquanto responde aos e-mails da manhã. Faz mais uma, duas, três reuniões. Dá uma volta pela casa para esticar as pernas. Percebe que o peixe está no fundo do aquário. Dá mais comida, mas ele nem tchuns. Volta pro computador pra mais uma reunião.

15: 34 AM

Rod: Fala!
Lelê: Fala.
Rod: Como estão as coisas?
Lelê: Tudo bem. Meu peixe parece que está mal.
Rod: Sério? Tem veterinário de peixe?
Lelê: Sei lá. Vou entrar em uma reunião agora.
Rod: Falow.
Lelê: Inté

Lelê entra na reunião. Com a chefe. Rola um certo stress. Normal, pero no mucho. Lembra da piada que fez com o Rod. Desliga a câmera, o áudio, e ri por 5 segundos. Liga tudo de novo, fazendo cara de sério. Toma mais esporro, mas sente que não é sério. Mesmo assim é cansativo. Outro dia, outro abuso. A reunião termina. Pensa em retomar a apresentação, mas desiste. Qualquer coisa alegará saúde mental. Não estará mentindo. Faz um sanduíche e vai pro quarto. No caminho percebe que o peixe morreu. Joga ele e a água do aquário na privada.

Rod termina a tarefa do chefe e as pendências. O trabalho, por hoje, terminou. Põe a máscara e vai na rua comprar umas cervejas e um sanduíche. No bar passa um homem vendendo peixes beta em aquários individuais. Não sabe por que mas compra um. Talvez lembre do peixe do Lelê. Volta pra casa e janta, tomando cerveja. O chefe liga e diz que vai mudar de área. Informa que vai indicar ele para o seu lugar. Rod agradece a confiança e desliga. Não sabe como se sentir. Toma uma cerveja, como comemoração ou lamentação.

22: 02 AM

Rod: Manda as novidades.
Lelê: Nenhuma. Ah, o peixe morreu.
Rod: Sério? Que doido. Acabei de comprar um.
Lelê: Não acredito. Um peixe?
Rod: É, um peixe. No mais?
Lelê: Tudo na mesma. Esporro da chefe e tal.
Rod: Meu chefe me ligou. Vai mudar de área e me indicou pro lugar dele.
Lelê: Parabéns!
Rod: Valeu, sei lá. Não sei se vai ser legal.
Lelê: Vai ser, pode crer.
Rod: Tá fazendo o quê?
Lelê: Nada. E você?
Rod: Nada também.
Lelê: Vou me recolher.
Rod: Já?
Lelê: Eu acordo cedo.
Rod: Eu sei. Beleza.
Lelê: Vai descansar também. Amanhã é outro dia.
Rod: Ou o mesmo. Sei lá.
Lelê: É mesmo, sei lá.
Rod: Falow.
Lelê: Inté.
Rod: Inté.

Rod dá comida pro peixe e fica observando ele nadar no seu pequeno aquário. Esquece do reality show.

Lelê fica com saudades do seu peixe. Decide que vai comprar um novo em breve. Dorme e sonha que respira embaixo d’água. Um sonho bom.

A máquina do (não) impossível

Um dia, umas semanas atrás, na volta de buscar minha filha no colégio, paramos na loja de brinquedos e lá estava ela: a máquina. Vocês conhecem a máquina, todo mundo conhece a máquina. Uma grande caixa retangular; a parte inferior de metal, em geral pintada de vermelho; a parte superior envidraçada; na frente, na altura da cintura, um joystick e um coletor de notas e moedas; e dentro dela, vocês sabem, uma garra de metal e uma enorme quantidade de bichos de pelúcia. Pequenos e grandes; coloridos e engraçados; fofos e tentadores. Tremi.

Eu já conhecia a máquina. Encontro com ela desde os anos 90. Nem sempre de forma amistosa. A primeira vez, nunca vou esquecer, foi no Barra Shopping. Em vez de ir jogar no fliperama, vi um pessoal lutando contra ela, e por lá parei. E não é porque goste de bichos de pelúcia. Não gosto. Só me senti desafiado. Todo mundo jogava uma ou duas moedas e saía revoltado dizendo:

– Essa máquina é impossível.

Me apaixonei.

A dificuldade assumida, a desistência alheia, a sensação de me jogar obsessivamente atrás de um objetivo que não me interessava só pra provar que era possível, tudo na máquina me dizia: fui criada pra você.

Comecei como todo mundo. Comprei umas poucas fichas, tentei, não consegui, me frustrei e saí revoltado. Mas, ao contrário dos outros, eu voltei. Uma, duas, várias vezes.

A minha obsessão em vencê-la era tão forte que, lembro, se formou uma platéia atrás de mim, o que só aumentou a minha determinação. Eu não era mais um desafiante solitário, eu era o representante do sonho de todo um povo.

Enfim, depois de gastar quase todo o meu dinheiro, consegui. A garra se lançou naquele mar de pelúcia e resgatou de lá um pequeno urso azul que dei a uma menina que acompanhava a minha batalha. Recebi de recompensa apenas um beijo na bochecha e o sentimento de ter feito algo que todos consideravam impossível.

Desde então, toda vez que a encontro, é a mesma coisa. Eu a desafio e, eventualmente, depois de muita persistência, a venço.

Porém, desde que a minha filha nasceu, eu não a via. Até esse dia.

Depois de assistir a alguns pais saindo do colégio com seus filhos tentarem vencê-la e repetirem o mesmo comportamento que vejo desde a primeira vez que a encontrei, minha filha pediu:

– Posso jogar na máquina, papai?

Como dizer não? Como dizer sim?

Fiquei dividido. Um lado meu queria agradá-la, mas outro não queria vê-la frustrada. Um lado meu queria jogar junto com ela, mas o outro tinha medo que ela ficasse tão obcecada quanto eu. Ela insistiu:

– Papai, posso jogar?

Cedi aos meus desejos mais primais e assenti. Mas,dessa vez, o desafio tinha um gosto diferente. Eu não só queria vencer a máquina, eu precisava vencê-la.

Esperei mais algumas pessoas afrouxarem a massa compacta de bichinhos dentro da máquina, coloquei 5 moedas no coletor e instruí a minha filha. Ao invés de buscar o bicho que deseja, mais importante é tentar os que são mais fáceis de agarrar. Para essa escolha, a posição é mais importante que o tamanho ou o formato. Os bichos de cabeça grande parecem fáceis, mas, mesmo quando agarrados, caem com facilidade da garra. O ideal é mirar nos que estão na horizontal, de preferência com a barriga pra cima. E, estando nessa posição, se você tiver escolha, busque os mais ao centro da máquina e os menores.

Ela me olhou sem entender, mexeu a garra sem foco, e disse:

– Vou tentar o polvinho.

Um erro. A garra desceu, ficou bloqueada por uma parede compacta de outros bichos e mal arranhou a superfície do bloco de pelúcia.

– Máquina maldita- a amaldiçoou.

Fui obrigado a intervir e ensinar pelo exemplo. Minha mão tocou o joystick e me senti como há 30 anos atrás. A eletricidade, a emoção, o propósito. Encontrei um burrinho de barriga pra cima. Levei a garra até em cima dele, chequei pelo lado se ela estava alinhada na outra coordenada, esperei a garra parar de balançar e apertei o botão. A garra desceu em câmera lenta. Um pai nos assistia com o filho e comentou:

– Filho, deixa essa máquina pra lá, isso é mó engana trouxa.

Não me senti ofendido. Ele tinha razão. Era uma máquina para trouxas, mas apenas os que não a conheciam podiam ser chamados assim.

A garra alcançou a superfície do mar de bichinhos e se encaixou diretinho em volta do burrinho. Quando ela começou a subir, o burrinho estava solidamente preso nela. Com alguns sobressaltos acompanhamos a garra vir até seu local inicial para se abrir e nos entregar nosso prêmio.

Minha filha delirava, enquanto o pai que nos assistia estava boquiaberto. Deveria estar aprendendo alguma lição com isso, mas qual ela era? Não sei.

A garra soltou o burrinho e nós o pegamos. Minha filha o levantou acima da cabeça como um troféu, enquanto as pessoas se reuniam ao nosso redor.

Uma mãe me ofereceu uma ficha para pegar um bichinho para a filha dela.

– Desculpe, assim é muita pressão. Eu não sou mágico pra conseguir pegar toda hora- declinei.

Ainda tínhamos 3 fichas. Eu precisava continuar.

– Papai, agora o polvinho- minha filha indicou.

Como já tinha pego um, achei de bom tom seguir a sua sugestão. Mesmo não conseguindo pegá-lo, eu já sairia no lucro. Acionei a garra e fui atrás do polvinho. Na primeira vez, o movi um pouco, mas quase não o tirei do lugar. Na segunda consegui levantá-lo, mas ele logo caiu e se virou exatamente como eu queria: de barriga pra cima. Na terceira, todos estavam aguardando a finalização da minha partida: minha filha, o pai descrente, a mãe preguiçosa, e seus filhos. A tensão e o silêncio eram quase palpáveis. Movi a garra para a última tentativa. Acertei sua posição, conferi a coordenada, esperei a garra parar de balançar e apertei o botão.

Dessa vez a garra foi como um raio. Caiu pesada sobre os bichinhos e, para a minha surpresa, agarrou não um, mas dois polvinhos. O povo, quer dizer, minha filha, o pai, a mãe, e seus filhos, aplaudiu entusiasmado. Quando minha filha os pegou, ofereceu um para cada uma das crianças que nos assistiam.

– Você já me deu um, papai- se explicou sem necessidade.

Minha missão estava cumprida. Como desafiante e como pai.

Desde então, quando voltamos do colégio, sempre faço o máximo para evitar o caminho que passa pela loja de brinquedos. Não por medo de falhar nem para evitar ceder às minhas obsessões. Por mais que fique tentado a me botar à prova novamente, acho melhor manter a mística que o impossível sempre pode ser possível. Sempre.

Filho da ficção

Toda noite, antes de dormir, minha filha pede para eu contar uma história sobre o avô que ela não conheceu e já está morto há 20 anos. Meu pai. O que conto a ela? Conto suas mentiras? Há outra opção? Mentiras foram tudo o que ouvi.

Segundo me contou, ele nasceu em Santana do Livramento há quase 100 anos, no dia 24 ou 25 de dezembro. Nunca se decidia em qual. Dependendo da fonte, foi no ano de 1922, 1924 ou, até, 1926. Ele nunca confirmou pois ele mesmo talvez não soubesse. Dizia que nasceu exatamente na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Se tivesse nascido na cozinha, gostava de lembrar, seria uruguaio. Nasceu no quarto. Brasileiro.

Da sua infância, lembrava pouco. Aleijou uma tia por causa de uma brincadeira maldosa. Amarrou uma corda na cadeira em que ela ia sentar e a puxou exatamente quando ela largou o peso do corpo. Improvável. Teve um doberman que gostava de soltar quando recebiam visitas inconvenientes, como um vendedor de jóias que foi obrigado a se pendurar em um lustre para não ser mordido. Possível, considerando que mesmo velho tinha a mania de aparecer de cueca na sala quando queria que as visitas fossem embora. E, com raiva por não poder ir ao circo, abriu a jaula do leão e colocou a cidade em pânico. Mentira. Mas gosto de pensar que foi verdade.

Filho de um coronel que morreu cedo e de uma dona de casa que, ouvi dizer, morreu de cirrose, ficou órfão na tenra infância. Caçula de quatro irmãs, ele foi enviado ao Rio para morar com tios e, assim que teve idade, foi colocado interno no Colégio Militar.

O tio pelo jeito não gostava de suas brincadeiras. Meu pai costumava vestir as roupas do tio e fingia ser um vizinho de visita, ou ser o padeiro ou o leiteiro fazendo entregas. A sua brincadeira preferida era se vestir de mendigo e vender jornais do dia anterior no bonde. Um dia esbarrou com o tio. No susto, pulou do bonde em movimento e quase foi atropelado. Dizia.

Entrou no colégio militar e aí, sua história, como boa parte das histórias das figuras folclóricas do século XX, começou a se misturar com a história do Brasil e do mundo.

Segundo ele, tínhamos, temos, um parentesco distante com Getúlio Vargas. Por conta disso, contava, foi convidado a discursar para o presidente em uma de suas visitas ao colégio. O problema é que o odiava. De todo o coração. Não tinha explicação, nem história familiar ou um claro posicionamento político que justificasse o sentimento. Cheio de raiva, assumiu o dever do discurso e escreveu dois. Um apresentou à direção do colégio e foi aprovado; o outro, ilegal, leu na frente do presidente, e de todos alunos e professores, e acabou preso por duas semanas com apenas 12 anos. Estava se tornando homem.

Sexualmente teve a sua iniciação com as polacas da zona do mangue. Me confidenciou que nunca tirava as meias no ato, pois ficou com trauma. Em uma das suas primeiras vezes, enquanto se despia, fez menção de tirar as meias e foi impedido pela polaca cheia de sotaques e erres:

“Prra que tirarr meia? Pé não foderr.”

Parece uma história desnecessária mas é um detalhe importante na sua constituição emocional, na medida em que fica claro que aprendeu sobre o sexo, e de uma maneira torta, sobre o amor, com mulheres que ele dizia, o que imagino ser um enorme exagero, lerem o jornal durante o ato.

Em paralelo, nos fins de semana, vestia o uniforme de gala do colégio e penetrava nas festas tijucanas, aparentemente protegido pelo personagem. Porém foi pego inúmeras vezes, mas nunca punido.

Com essa mesma ilusão de sorte e direito adquirido, ele foi para a segunda guerra, nas suas palavras, “para derrubar Getúlio”. Outros dizem que ele foi fazer dinheiro, o que explica ele não fumar e pedir cigarros para vender aos italianos.

No seu tempo de combate, se desligou do Brasil. Chegou a fingir a própria morte e ter uma missa de sétimo dia rezada, para se livrar de uma namorada. Óbvio que esbarrou com ela na volta ao Brasil, mas, espertamente, fingiu ser seu próprio irmão gêmeo para escapar de uma briga. É difícil de acreditar que alguém cairia nessa história, mas se você o conhecesse, veria como ele tinha a lábia necessária para fazer alguém acreditar nisso.

Por toda a sua vida, ele entrava e saía de situações loucas com extrema facilidade, talvez mais por confiança do que por habilidade. Porém, quando eu nasci ficou, complicado manter uma história coerente.

Se fosse um sujeito calado, talvez eu tivesse ficado iludido por toda a minha vida; mas era um contador de histórias apaixonado pela própria voz e pelo incrível personagem que criou. Assim, um dia, quando eu tinha doze anos, o conflito de contexto entre as suas sedutoras fantasias e a monótona realidade explodiu na sua cara. Me descobri filho de uma ficção.

Nunca o confrontei, mas ele sabia que eu sabia. E, assim, vivemos por mais 15 anos. Ele se retraiu. Não contava as histórias que o fizeram famoso com a mesma verve; tentou se matar, mais como teatro do que como verdade; e exacerbou suas tendências hipocondríacas inventando doenças novas toda semana. Lembro de assistir, escondido atrás das cortinas, ele caminhando com dificuldade apoiado numa bengala, só para atravessar a rua correndo quando achava que não estava sendo observado.

Um dia uma doença de verdade o abateu e feriu justamente o que achava ter de melhor: a masculinidade torta que anos de colégio militar e fanfarronice lhe colocaram na cabeça. Durante a convalescência que levou à sua morte, eu, sob tratamento psicoterápico, tentei confrontá-lo sobre a verdade. Não tive sucesso. Nem ele devia saber mais o que era real ou não. Nos afastamos.

Ele morreu distante de mim, sem consciência de quem foi e de quem inventou que era. Quando quis velá-lo, fui expulso por seus parentes do cemitério. Uma história curiosa que parece bem com as que costumava contar.

Vez ou outra, quando sua neta me pede histórias sobre ele, eu penso em tudo isso e me pergunto por que não tenho mais fotos ou documentos que possam comprovar a sua existência. Eu busco, busco, mas não acho. Tudo o que restou dele foram as histórias, então, só me resta contá-las a conta gotas, até que elas deixem de ser suas, de ser minhas e se tornem de sua neta e de todos que as ouvirão.

Há quase 100 anos ele nasceu, mas sua vida é mais forte hoje do que nunca. Ele deixou de ser verdade, chata e previsível, e virou o que sempre quis ser: ficção. E eu, seu filho, graças a ele, virei um ficcionista.

O niilismo das provas da vida

Essa semana, eu caí na real que, hoje, a minha filha vai fazer a primeira prova da sua vida. Quer dizer, prova de verdade: em sala de aula, com tempo contado, pressão e sem poder colar com a anuência da escola. Prova, assim, tipo prova.

Mas a culpa de isso só rolar agora não é dela. Ela entrou no ensino fundamental junto com a pandemia e, por conta do formato online, todos os eufemisticamente chamados “trabalhos avaliativos” do primeiro e do segundo ano pelos quais ela já passou foram feitos em casa. Óbvio, com intensa supervisão; mais materna do que paterna, confesso.

Não admira, as notas da turma toda foram incríveis. Dez de ponta a ponta. Por que será?

Na sexta passada, quando a minha mulher me mandou um whatsapp com a lista de matérias que iam cair nas provas, comecei a perceber que a tensão tinha começado a subir.

– Você viu as matérias das provas? A gente precisa botar ela pra estudar- minha mulher vez ou outra repetia.- Se ela não estudar, vai tirar nota baixa, tá?
– É, vi. Sei, tá certo. Tem razão – eu meio que desconversava.

Essa semana, fui buscá-la na escola e os pais, que, ao contrário de mim, tem o hábito de manter relações sociais uns com os outros, comentavam:

– Viu que tem prova essa semana?
– Vi, estou tão preocupada.
– Como eles vão lidar com isso? Nunca fizeram prova, assim, em sala de aula.
– É, eu sei. Estou até sem conseguir dormir. Vocês já começaram a estudar?
– Ainda não, mas vamos.
– Nós também não começamos. Mas vamos, sim. Vamos, sim.

Nessa hora ficou claro pra mim a importância das provas escolares para as pessoas e como isso pode influenciar como elas lidarão com os demais desafios da vida. Desculpa, eu sei, pode até parecer papo de coach, mas não é.

Olhando de uma forma muito pragmática e piagetiana, prova deveria funcionar dessa maneira: o professor “ensina” e desafia o aluno; o aluno “estuda” e exercita os conceitos; nesse processo de experimentação, o aluno desenvolve uma nova estrutura cognitiva; e, enfim, como o processo escolar é coletivo, é aplicada uma avaliação, a tal prova, para verificar se o grupo chegou em conjunto a esse novo patamar, e quais são os gaps de aprendizagem que devem ser sanados.

Simples, né? Sem stress ou angústias. Mas não é assim que rola. Principalmente num país cheio de concurseiros que sonham com ascensão social, segurança eterna e aposentadorias antecipadas, a.k.a. desejo de morte, vindas do seu desempenho em provas que só se repetem de cinco em cinco anos.

Por conta dessa cultura, o pessoal considera que a prova, ao invés da avaliação de um processo de aprendizagem colaborativo entre o professor e o aluno, é uma espécie de teste mítico para abrir as portas para uma vida melhor.

Esse nivel de expectativa gera uma bruta tensão pré-prova e estudar acaba se tornando presa fácil da procrastinação obsessiva do “deveria estar estudando”; e o desespero pelo medo do fracasso lhe faz se martirizar, estudando de véspera até altas horas e dormindo com os livros sob o travesseiro para aprender por osmose. o que, pode crer, não funciona.

Essa relação tóxica com o processo avaliativo se torna uma referência para como você lidará com os seus desafios no mundo adulto, sejam eles, um treinamento, uma avaliação de projeto, uma sessão de feedback, a apresentação de relatório anual, e até um simples exame de sangue. O importante, parece, não é aprender com as experiências e melhorar, o importante é passar e deixar isso tudo para trás. Como já disse antes, desejo de morte.

Eu, pessoalmente, não consigo entender isso. Fui criado num colégio com prova mensal e testes surpresa à rodo. Além disso, reprovação lá era mato. Tinha uns anos em que se abriam até três turmas de recuperação por série para dar conta de todo mundo que ficava pendurado.

Esse clima de terror profundo tornava a experiência da prova uma vivência niilista de comprovação da falta de sentido da vida e das forças do acaso no seu futuro. Por isso não havia medo de fato, apenas resignação. Além de não acharmos que a prova poderia nos trazer algo de bom, pra que nos importar com o mal que ela podia nos fazer?

Então, incorporando minha melhor versão de Arthur Schopenhauer, lá fui eu estudar com a minha filha. Peguei a lista de temas e passei um a um com ela:

– Hum, esse lance aqui, como funciona?
– Assim, papai.
– Beleza, me dá um exemplo.
– Esse, tá certo?
– Tá. E se fosse assim?
– Aí era dessa forma.
– Beleza. Acho que você vai se dar bem. Amor, já estudei com ela!
– Já? Como já terminou? Impossível. Assim ela vai tirar nota baixa. Vem estudar com a mamãe, filha. Deixa esse seu pai maluco pra lá.

O pior é que eu acho que ela vai se dar bem, e, se não se der, a vida continua e tem mais prova pela frente. Pelo menos, agora, a gente vai saber o que ela não aprendeu e onde precisar melhorar. Afinal, é isso que importa, não?

Um necrológio urbano do Rio de Janeiro

Nasci na São Clemente, esquina com a Sorocaba, numa maternidade que não existe mais. Hoje é um daqueles prédios quase brutalistas dos anos 80, com muitas garagens e poucas pessoas.

Aprendi a andar e falar na Gustavo Sampaio, num quarto e sala com vista para a Atlântica. Nasci com o pé chato e caminhava na praia para curar. Curei. Depois de jovem e adulto(?) voltei a esse prédio para certas incursões bizarras e também pois tinha amigos que moravam lá. Me surpreendi com a imprecisão de minhas memórias. Física e Moralmente.

Na primeira infância estudei no Leblon em um colégio experimental. Voltava a pé pela praia com a minha mãe. Frequentei a praça do Lido antes de ser gradeada, a Ary Barroso, o Clube Radar e o Parque Peter Pan. Ia ao extinto cinema Ryan; ao, hoje fechado, Roxy; e ao, também fechado, Cinema Um. No seu lugar hoje tem um Hortifruti. Comecei a formar o meu paladar no Príncipe das Peixadas, que hoje é um Joaquina, e no Cervantes, em coma por conta da pandemia.

Na volta de uma visita ao meu avô em Campina Grande, descobri que tinha sido mudado pro Flamengo, para um prédio que ainda existe; e fui matriculado no colégio Bennett que virou uma universidade Univeritas. Não gostei da mudança e sempre quis sair de lá, o que só foi acontecer 17 anos depois.

Enquanto isso não acontecia, eu ia até onde minhas pernas permitiam. Andava de bicicleta nas calçadas no entorno do prédio, onde caí e tomei seis pontos no queixo; comprava gibi na banca do seu Antônio, já falecido; e ia à papelaria Líder comprar isopor e jogos de tabuleiro. A papelaria ainda existe, mas não tem esse nome, nem os mesmos donos.

Aprendi a ler e me colocaram para estudar num colégio em cima de um morro na rua Dom Gerardo, pertinho da praça Mauá. A rotina era pesada. Saía de casa às 7 da manhã e voltava às 6 da noite. Não me sobrava muito tempo pra ir a lugar algum, a não ser nos fins de semana. Aí os destinos eram o cinema São Luiz, na época uma só sala, e o cinema Largo do Machado, com duas salas, hoje usurpadas por um culto pentecostal. O programa cinéfilo sempre terminava no McDonalds ou nas sorveterias Babuska e Sem nome. Hoje não tem mais sorvete. Só uma Hering e uma Leader Magazine.

Me tornei adolescente e ganhei quilômetros de coleira. Ia à Biblioteca Nacional e à Machado de Assis; aos sebos da praça Tiradentes; às livrarias do Largo do Machado; e aos cinemas da Tijuca. Nenhum deles sobreviveu. Quer dizer, os sebos, as livrarias e os cinemas. As Bibliotecas ainda estão lá. Por enquanto.

O tempo passou e ganhei a noite. Caminhava sem destino pelo Catete e Flamengo, com breves paradas no Caneco 2, que virou um restaurante árabe, e no Machadão, transformado numa loja de vitaminas. Lá a gente ia para conversar sobre a vida, tomar chope, comer casquinha de siri e tomar caldo verde. Dá saudades.

Entrei na faculdade e me mudei espiritualmente para Copacabana. Quando não estava na sala de aula, primeiro na Gávea, depois na praia Vermelha, eu ia pra Copa pra beber nos bares da orla, da praça do Lido e no Cervantes, além de fazer amizades das quais não me orgulho. Ia também às saudosas boates, Galeria, Basement e 1904, e às diversas livrarias que não existem mais no bairro.

Para não dizer que não ia a outros lugares, frequentava o Mosca Feliz na Lauro Muller, que se mudou para a Lapa, e de nome para não ser reconhecido, e curti umas noites nas boates da Visconde Silva, onde eu não me encaixava mas era bem acolhido.

Um dia me vi sozinho em casa, todos da família tinham se mudado, e resolvi abandoná-la também. Fui para a Tijuca onde tirei um sabático de 2 anos, sem passar dos limites da Marquês de Valença e da São Francisco Xavier. Por obra e graça de entrar no mercado de trabalho, consegui voltar pra Copa onde fiquei também circunscrito a poucos quarteirões, nesse caso em torno da Djalma Ulrich, dividindo meu tempo entre o botequim Vedete e a creperia Yonza. Não sei que fim eles tiveram.

A idade adulta chegou e tornou o Rio um borrão geográfico para mim. Morei em Ipanema e em Botafogo, mas nesse período frequentei poucos lugares de nota como o Adriano na Real Grandeza, que ainda sobrevive, graças a Deus; mas, no mais, ficava dentro de casa. Esse afastamento da cidade chegou a um ponto em que a abandonei.

Fiquei 4 belos anos em BH. Não farei comentários, pois o necrológio é do Rio e não de Belo Horizonte. E os meus amigos que ainda moram lá dizem que ela merecia um necrológio à parte. Acabei voltando, mas a relação com o Rio azedou.

Voltei para Copacabana em plena preparação para as Olimpíadas. Não foi uma visão bonita. Uma cidade cheia de tapumes e com lugares tradicionais sendo transformados em armadilhas para turistas. Alguns lugares acabaram fechando pois não atendiam à visão pasteurizada que o Rio errou em seguir. Mais uma vez acabei me fechando em poucos quarteirões para criar relações mais humanas e significativas. Não queria ser cliente, mas, sim, freguês.

Por obra e graça da crise multifatorial que assola o país, me mudei pra praça São Salvador. Confesso que inicialmente achei estranho, mas me adaptei bem. Acabei fazendo amigos no Salvatore Café; comecei um fanzine local de humor político; mas assisti ao fechamento de negócios clássicos, como a papelaria Macris, que deu lugar a, Deus nos perdoe, uma hamburgueria gourmet.

Agora, esperando o momento certo para sair novamente às ruas, me questiono o que encontrarei nesta terra devastada. Tive a sorte de crescer numa cidade, mesmo em crise permanente, com história. A pandemia e as péssimas escolhas de nossos eleitores destruíram tudo que havia, sem deixar nada no lugar. Talvez haja uma maneira de olhar positivamente para isso; talvez seja o momento de construir a nova história da cidade. Afinal viver no espaço físico é um constante participar de velórios e nascimentos de uma arquitetura urbana que nos fala sobre quem somos e quem queremos ser. Espero que dessa vez não nos esqueçamos do que veio antes de nós, nem repitamos, mais uma vez, os erros com os quais não cansamos de desaprender.