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despertar

…dormiu.

acordou no quarto escuro e tentou acostumar a sua vista à falta de luz. aos poucos começou a perceber um raio de luz que vinha da janela. se levantou com cuidado para não acordar ninguém e tentou espiar de onde vinha essa luz. de uma janela que nunca tinha percebido, no prédio espelho, em frente ao seu, uma pessoa olhava de volta. se escondeu, num susto, e percebeu, de canto de olho, que a pessoa fez o mesmo.tentou olhar novamente, sem que a outra pessoa lhe percebesse, mas a pessoa imitou seus movimentos. ficou de quatro e, olhando para o raio de luz, engatinhou até à cama, esperando esquecer do outro alguém. quem seria essa outra pessoa? quem seria? será que poderia ser…melhor nem pensar nisso. fechou os olhos, torcendo para ter um sonho que apagasse todo esse medo e estranheza da sua mente. dormiu.

acordou…

O 1° Mergulho

Na primeira segunda-feira da sua aposentadoria, ele acordou no horário de sempre, mas, como não tinha compromisso algum, não soube o que fazer. Ficou uns momentos sentado na ponta da cama, até que ouviu a praia lhe chamando. Foi até a janela e, entre os prédios de Copacabana, conseguiu ver uma nesga de mar.

Estava nublado, ventando um pouquinho, mas não conseguiu resistir. Colocou a sunga e, enquanto procurava uma bermuda, percebeu que não precisava dela. Iria pra praia só de sunga. Ora, bolas, pensou, não preciso mais prestar contas pra ninguém.

Pra não dizer que foi totalmente largado, colocou 20 reais na sunga, botou uma toalha no ombro, calçou os chinelos e partiu.

No elevador, encontrou o vizinho do 802 todo de terno indo pro trabalho.

– Bom dia- cumprimentou com toda a naturalidade que só uma pessoa quase nua pode ter.
– Bom dia, tá indo pra praia?- o vizinho perguntou jocoso.
– Eu tô, e você?

No térreo, cumprimentou o porteiro e ganhou as ruas. Ao seu redor pessoas com suas fantasias de trabalho passavam na direção contrária, lançando olhares de surpresa e inveja. Venceu a multidão, e, no calçadão, frente a uma praia quase vazia, proclamou:

– Tudo meu.

Tirou os chinelos e aproveitou com calma a textura da areia fofa sob os seus pés. Na beira da água se aproximou de uma senhora que, como ele, ignorava o frio para curtir a praia. Jogou o dinheiro e os chinelos, enrolados na toalha, na areia e pediu à mulher:

– Olha pra mim, moça?

Sem olhar para trás, caminhou em direção ao mar. A água gelada tocou seus pés, mas ele não se retraiu. Como a criança que esqueceu que fora, correu em direção à arrebentação, saltando as ondas com as pernas tortas. No rosto, um sorriso enferrujado iluminou o dia nublado. Mergulhou.

Senhora

Senhora, tá me ouvindo aí dentro? Seja bem-vinda a esse mundo doido.

Mas como a senhora  é preguiçosa. Sua mãe já está tendo contrações há horas e a senhora não faz o menor esforço pra sair daí.

Muito prazer, senhora. É uma satisfação finalmente encontrá-la presencialmente.

Vai com calma! Assim a senhora vai deixar a sua mãe seca.

Isso, senhora. A senhora vai andando, se segurando pela parede, e pode mexer na estante, mas não conte pra sua mãe, senão ela me mata.

De todas as primeiras palavras que a senhora teria pra dizer a senhora vem e me escolhe “Batata”?

Não chore, senhora. Também acho o modelo educacional ocidental traumático e tirânico, mas precisamos viver em sociedade. Não é, mesmo?

Como é? A senhora vai querer que eu espere você brincar mais um pouco com seus amigos aí na escola? A senhora não tem respeito por mim, mesmo.

Concordo com a senhora: as provas não servem pra nada. Mas, guarda essa revolta, e termina de estudar essa tabuada de 7. Depois que se formar você muda o mundo.

Eu sei que a senhora é quaaaase uma adulta, mas se chegar depois das 10… bom, você sabe que não vai acontecer nada, mas, por favor, vê se a senhora se cuida.

A senhora realmente quer me apresentar esse senhorzinho que a senhora chama de namorado? Pra que perder meu tempo e memória tentando lembrar dele? Em duas semanas, a senhora nem vai saber como ele se chama.

Quem diria? Universidade… Logo a senhora que dizia odiar estudar. Não dizia? Então canta aí a tabuada de 7 para mostrar que eu estou errado.

Casar? No meio da faculdade? E com aquele senhorzinho que a senhora começou a namorar na adolescência? A senhora me perdoe, mas vou exercer meu poder de veto pela primeira vez na vida. Onde já se viu? Jogar sua vida fora por conta de uns e outros.

Parabéns, senhora bacharel. Agora, me diz, eu não tinha razão quando falei para a senhora não se casar no meio da faculdade? Como era o nome daquele senhorzinho, mesmo? A senhora não lembra ou não quer lembrar?

Se mudar de casa? Pra quê, senhora? Pode ficar por aí, ninguém está reclamando da sua presença. Se bem que, se eu morasse comigo, talvez também quisesse morar em outro lugar.

Que casa bonita a da senhora. Será que tem um quarto aí pra mim? Cansei de morar comigo mesmo e a senhora é uma excelente companhia.

Vou te dizer, que velocidade surpreendente pra casar, hein, senhora. Mas, não se preocupe comigo, só desejo boa sorte e todas essas bossas. Mas cá entre nós, tem algum motivo especial pra essa pressa toda?

Enfim a senhora traz os seus senhorzinhos para me conhecer. Começou logo com dois de uma vez. Conselho? Para por aí. Se forem como você, vai ser problema em dobro.

Não foi nada, senhora. Essa dor repentina é coisa normal, coisa de velho. Você não sabe o que isso, mas vai saber, vai saber.

Claro que eu vou melhorar, senhora. Onde já se viu? Tenha mais confiança em mim.

Sabe, senhora, se existir um lugar onde a gente pode sentir saudade das coisas desse mundo, a senhora vai ser a minha saudade principal.

Senhora, tá me ouvindo aí? Foi um prazer te conhecer.

A Eleição sem Fim

Na última segunda feira do mês de outubro foi realizada a 27a. reunião extraordinária do Edifício Sinceridade para a eleição do novo síndico.

A reunião se iniciou, como esperado, às 7 da noite. Os candidatos cumprimentaram os condôminos e apresentaram suas propostas. Primeiro, o concorrente disse que ia fazer tudo diferente da atual administração, mas não explicou como, nem o quê. Depois, o último síndico relatou que se sentia obrigado a se candidatar mais uma vez para evitar que o concorrente piorasse os atuais problemas do condomínio, os quais ele nem se dignou a enumerar. Com o fim da apresentação das pseudopropostas dos candidatos, a palavra foi passada aos condôminos com direito a voto.

A moradora que tem animais domésticos e apartamentos demais perguntou aos candidatos qual seria a sua política em relação a ter bichos nos apartamentos. Para não perder seu voto, ambos desconversaram. O militar da reserva que tem ocupação e inteligência de menos perguntou como iriam lidar com o problema das drogas e gangues do prédio. Os candidatos tentaram sem sucesso esclarecer que esse não era um problema real, mas, frente aos protestos raivosos do condômino reacionário, para não perder seu voto, ambos disseram ser pela pátria, pela família e pela propriedade. A professora universitária bem intencionada e bem pernóstica perguntou como seria a política de ESG dos candidatos. Sob os olhares de surpresa dos presentes, ela esclareceu que a sigla queria dizer “Enviromental, Social & Governance”, o que no fim das contas não ajudou a tirar ninguém da ignorância. Sem saber responder, e para não perder o seu voto, ambos disseram ser progressistas de carteirinha.

Terminadas as perguntas, os candidatos começaram a discutir, sem substância, sobre suas propostas. Atraídos pelo buraco negro de sentido, os demais condôminos começaram a expressar suas opiniões vazias num monólogo coletivo sem fim. Às 10 horas da noite, cansados do fútil exercício do poder, os candidatos concordaram em continuar com o debate numa data posterior onde a eleição poderia, finalmente, ocorrer.

Enquanto isso, por mais período, o Edifício Sinceridade continua sem governo e sem tirania. Pelo menos por enquanto.

Parece anarquia mas é simplesmente o real sentido democracia: uma eleição sem fim, onde quem ganha são os que não escolhem tolos vaidosos para liderá-los.

Seria perfeito, se não caísse nas costas de um idiota como eu a responsabilidade pelas atas dessas infindáveis reuniões.

Desfiando

Quando ele morreu, não foi surpresa. Não era velho, nem doente, mas todo mundo via que ele não se cuidava. Como pra todo mundo, era só uma questão de tempo. Mais cedo ou mais tarde ia/vai acontecer; calhou de ser mais cedo. Fazer o quê?

Por essas e outras não foi uma tragédia muito grande. A família foi amparada por conta de seguros e reservas financeiras; os amigos tinham histórias boas o suficiente para exercitarem uma memória positiva da breve sua existência; e, no trabalho, como dizem no mundo corporativo, ninguém é insubstituível.

Porém, quando ele se foi, um pequeno nodo de uma grande rede começou a se desfazer. Sem as conversas sobre as agruras da vida que tinha na banca de jornal, o fardo do jornaleiro ficou pesado demais, ele voltou a beber e morreu num acidente de carro onde atropelou três crianças; a dona do botequim, parece até piada, tomou um baque muito grande nas finanças quando perdeu seu melhor cliente, e o espaço tradicional fechou para deixar no lugar uma, cruz credo, hamburgueria gourmet; e o filho meio maluquinho do vizinho de baixo perdeu o seu amigo de trocar revistas em quadrinhos e, ao invés de se tornar um artista, foi estudar economia como seu pai.

Como eu disse, não foi uma tragédia muito grande, mas foi maior do que aparentou. E, como sempre, o mercado corporativo mais uma vez errou: todos são insubstituíveis.

Adoção

– Onde você comprou esses gatos?
– Não comprei, adotei.
– Ah, tá.
– Porquê? Você não gosta de gatos?
– Acho que gosto, não sei, mas eu já tive cachorros.
– Mas de gatos? Você gosta?
– Não desgosto. Tem as coisas pra eles?
– Que coisas?
– Sei lá, pote pra água, comida, aquele lance pra eles fazerem xixi…
– Areia?
– Isso, areia.
– Tem, não. Tem que comprar.
– Deixa que eu vou lá.

30 minutos depois ele volta com tudo.

– Ó, tá aqui.
– Ai, que ótimo. Obrigada. Já, já, eu arrumo tudo.
– Não. Deixa que eu arrumo.
– Tá bom. Obrigada.

10 minutos depois tá tudo arrumado. Os gatos bebem, comem e fazem cocô.

– Cara, vou te falar. Até fiquei cansado.
– Sério?
– Sério. Vou dar uma deitada.
– Beleza.

Ele deita e em 5 minutos está roncando. Os gatos deitam em cima dele e ele nem se abala. Adoção finalizada.